Quando a Minha Casa Deixou de Ser Minha: O Preço da Generosidade Familiar
— Não achas que já chega, Halina? — perguntei, tentando manter a voz firme, mas sentindo as mãos a tremerem enquanto segurava a chávena de chá. O relógio da cozinha marcava quase meia-noite e eu já não me lembrava da última vez que me sentira dona do meu próprio espaço.
Ela olhou-me de relance, sentada no sofá com o portátil aberto e os pés descalços em cima da mesa de centro. — Chega do quê, Mariana? — respondeu, sem sequer desviar os olhos do ecrã. — Se tens algum problema, diz logo.
Respirei fundo. O cheiro do seu perfume misturado com o aroma do jantar que ela cozinhara — sem me perguntar nada, como sempre — pairava no ar. Era estranho como um simples gesto de hospitalidade se podia transformar numa prisão invisível.
Quando Halina me ligou há três meses, estava desesperada. O marido tinha-a deixado por outra mulher e ela não tinha para onde ir. Lembro-me da voz dela ao telefone, trémula, quase infantil: “Mana, preciso mesmo de ti agora. Só até encontrar um sítio.”
Claro que disse que sim. Sempre fomos próximas, mesmo depois de ela ter ido estudar para Coimbra e eu ter ficado em Lisboa. Partilhámos tudo em miúdas: o quarto minúsculo na casa dos pais em Setúbal, os segredos sobre os rapazes do bairro, as promessas de nunca nos abandonarmos.
Mas agora, sentada na minha própria sala, sentia-me uma estranha. Halina foi-se instalando aos poucos: primeiro trouxe duas malas, depois caixas com livros e roupa, depois a gata, depois o piano elétrico. E com cada objeto dela que entrava em casa, parecia que um pedaço meu desaparecia.
No início, tentei ser compreensiva. Ela chorava muito, passava horas ao telefone com advogados ou com a mãe — a nossa mãe — a discutir detalhes do divórcio. Eu fazia-lhe chá, ouvia os desabafos, deixava-a escolher os filmes à noite.
Mas as semanas passaram e Halina começou a agir como se a casa fosse dela. Mudou os móveis de sítio porque “assim fica mais prático”, encheu o frigorífico com comida vegetariana porque “é mais saudável”, criticou o meu gosto por novelas e até convidou amigas para jantares sem me avisar.
— Mariana, tens de te soltar mais — dizia ela, rindo-se enquanto abria uma garrafa de vinho verde para as amigas. — Esta casa estava tão morta antes de eu chegar!
Eu sorria amarelo e recolhia-me ao quarto, fingindo que tinha trabalho para fazer. Mas por dentro sentia-me cada vez mais pequena.
O pior foi quando ela começou a implicar com o meu namorado, o Rui. “Achas mesmo que ele te merece?”, perguntava-me à frente dele. “Não vês que ele só aparece quando lhe convém?”
Rui tentava ignorar, mas acabou por vir menos vezes cá a casa. “A tua irmã é insuportável”, disse-me um dia. “Parece que ela quer tomar conta da tua vida.”
Tentei falar com Halina várias vezes. “É só até arranjar trabalho”, prometia ela. Mas depois recusava entrevistas porque “não era bem aquilo que procurava” ou porque “o salário era uma miséria”.
A nossa mãe ligava todos os dias para saber como estávamos. “Tens de ter paciência com a tua irmã”, dizia-me ela. “Ela está muito frágil.” Mas eu já não aguentava mais.
Uma noite ouvi Halina ao telefone no corredor:
— Não volto para aquela casa velha dos pais nem morta! Aqui estou bem instalada… A Mariana nunca diz nada.
Foi aí que percebi: ela não tinha intenção nenhuma de sair tão cedo.
Comecei a sentir raiva — dela, de mim própria por não conseguir impor limites, da nossa mãe por sempre esperar que eu fosse a responsável.
As discussões tornaram-se diárias. Um dia cheguei a casa e encontrei as minhas plantas todas na varanda porque “fazem alergia à gata”. Noutra manhã, Halina atirou-me à cara:
— Tu é que devias agradecer por teres companhia! Antes vivias aqui sozinha como uma velha!
Chorei no banho para ninguém ouvir. Sentia-me invadida, humilhada na minha própria casa.
O ponto de rutura foi quando Halina organizou uma festa surpresa para o aniversário dela… sem me avisar. Cheguei do trabalho e encontrei dez pessoas estranhas na sala, música alta, copos espalhados por todo o lado.
— Mariana! Vem brindar connosco! — gritou ela, já meio embriagada.
Fugi para o quarto e tranquei-me lá dentro. Liguei ao Rui em lágrimas.
— Tens de pôr um ponto final nisto — disse ele. — Ou ela sai ou tu vais acabar por enlouquecer.
Na manhã seguinte esperei que Halina acordasse e sentei-me à mesa da cozinha com um papel na mão.
— Halina, precisamos de conversar — disse-lhe.
Ela revirou os olhos.
— Outra vez dramas?
— Não é drama nenhum. Isto é a minha casa. Dei-te abrigo quando precisaste mas agora preciso do meu espaço de volta. Tens duas semanas para encontrar outro sítio.
Ela ficou em silêncio durante uns segundos eternos. Depois levantou-se bruscamente e saiu batendo com a porta.
Durante dias não trocámos palavra. A nossa mãe ligou-me furiosa:
— Como é possível fazeres isso à tua irmã? Ela está tão vulnerável!
Senti-me a pior pessoa do mundo mas mantive-me firme. Halina acabou por arranjar um quarto alugado em Almada e saiu sem se despedir.
A casa ficou estranhamente silenciosa depois disso. No início senti alívio — finalmente podia ver as minhas novelas em paz, voltar a ter as plantas na sala, convidar o Rui sem discussões.
Mas também senti um vazio enorme. A culpa corroía-me: será que fui egoísta? Ou será que finalmente aprendi a defender-me?
Agora olho para trás e pergunto-me: até onde devemos ir por família? Quando é que ajudar alguém se transforma numa prisão? E vocês… já passaram por algo assim?