Quando a Minha Casa Deixou de Ser Minha: O Desafio de Viver com o Meu Filho e a Nora
— Mãe, podes baixar o volume da televisão? A Sofia está a tentar descansar — disse o Miguel, com aquele tom que mistura preocupação e impaciência.
Olhei para ele, sentado no sofá da sala onde sempre vi novelas com o teu pai, e senti um nó na garganta. A televisão estava no volume 12, como sempre. Mas agora, tudo parecia demasiado alto, demasiado presente. Desde que o Miguel e a Sofia vieram viver cá para casa, há três meses, sinto-me uma intrusa no meu próprio lar.
Nunca pensei que aos 62 anos teria de aprender a andar em bicos de pés dentro da minha própria casa. Sempre imaginei que a velhice seria um tempo de paz, de chá quente ao fim da tarde e de conversas com amigas na varanda. Mas a vida tem destas ironias: depois de perder o António para um cancro rápido demais, achei que o pior já tinha passado. Enganei-me.
O Miguel perdeu o emprego em Lisboa. A Sofia, grávida de cinco meses, não podia continuar a pagar a renda do apartamento minúsculo onde viviam. “É só até nos reerguermos, mãe”, disse-me ele ao telefone, com aquela voz de menino que nunca deixou de ser meu filho. Como podia eu dizer que não?
No início, até gostei da ideia. A casa parecia menos vazia. O cheiro do café pela manhã misturava-se com o perfume doce da Sofia. Mas rapidamente percebi que as rotinas deles eram diferentes das minhas. O Miguel gosta de jantar tarde; eu sempre jantei às oito. A Sofia precisa de silêncio para dormir; eu gosto de ouvir rádio até adormecer. Pequenas coisas que se foram tornando grandes.
Uma noite, ouvi-os discutir no quarto ao lado:
— Não aguento mais isto, Miguel! A tua mãe está sempre por perto. Não tenho privacidade nem espaço para mim.
— Sofia, ela está a ajudar-nos. Não podemos exigir tudo…
— Mas eu preciso de sentir que esta casa também é minha!
Fiquei imóvel na cama, com lágrimas nos olhos. Como é possível sentir-me tão sozinha rodeada de gente?
No dia seguinte, tentei ser invisível. Preparei o pequeno-almoço cedo e fui dar uma volta ao parque. Quando voltei, encontrei a cozinha desarrumada e um bilhete: “Fomos ao centro de emprego. Não te preocupes connosco.” Senti-me uma empregada na minha própria casa.
As semanas passaram e as tensões aumentaram. O Miguel começou a evitar-me. A Sofia fechava-se no quarto durante horas. Uma tarde, entrei para lhes perguntar se queriam jantar comigo e apanhei-os a discutir:
— Não quero criar o nosso filho aqui! — chorava a Sofia.
— Não temos alternativa! — gritava o Miguel.
Saí sem dizer nada. Fui até à varanda e olhei para o céu cinzento de Lisboa. Lembrei-me dos tempos em que o Miguel era pequeno e corria pela casa com os carrinhos de brincar. Lembrei-me do António a rir-se das nossas birras à mesa do jantar. Agora, só havia silêncio e portas fechadas.
Uma noite, não aguentei mais:
— Miguel, precisamos de conversar — disse-lhe enquanto ele lavava a loiça.
Ele olhou para mim, cansado.
— O que foi agora, mãe?
— Sinto que perdi a minha casa. Sinto que perdi o meu filho.
Ele largou o prato e sentou-se à mesa.
— Eu também me sinto perdido, mãe. Não queria isto para ti nem para nós.
A Sofia apareceu à porta da cozinha, olhos vermelhos.
— Desculpe, Dona Teresa… Eu só queria um pouco de paz para mim e para o bebé.
Chorámos os três naquela noite. Pela primeira vez em meses, falámos honestamente sobre os nossos medos e frustrações. O Miguel prometeu procurar trabalho fora de Lisboa se fosse preciso. A Sofia pediu desculpa por me fazer sentir uma estranha na minha própria casa.
Mas as coisas não mudaram muito depois disso. As rotinas continuaram desencontradas; os silêncios tornaram-se mais pesados. Comecei a sair mais vezes: ia ao café da Dona Amélia, passeava pelo bairro antigo onde cresci, sentava-me no banco do jardim a ver as crianças brincarem.
Um dia encontrei a minha vizinha Clara no supermercado:
— Então Teresa, como vai essa vida cheia?
— Cheia demais, Clara… Sinto falta do vazio.
Ela riu-se e deu-me um abraço apertado.
— Às vezes é preciso dizer basta, sabes? A tua casa é teu refúgio.
Pensei muito nisso naquela noite. E se eu dissesse basta? E se pedisse ao Miguel para procurar outra solução? Mas como podia eu expulsar o meu próprio filho? Que mãe faz isso?
O tempo passou devagar. O bebé nasceu numa madrugada chuvosa de novembro. Chama-se António, como o avô. Quando peguei nele nos braços pela primeira vez, senti um amor tão grande que quase me esqueci das mágoas todas. Mas logo voltaram as rotinas desencontradas: choro de bebé pela noite dentro, Sofia exausta, Miguel cada vez mais ausente.
Uma tarde ouvi-os falar baixinho na sala:
— Temos mesmo de procurar outra casa, Sofia. A minha mãe não merece isto.
— E nós? Também não merecemos viver assim…
Fui até ao quarto e chorei baixinho para ninguém ouvir.
Hoje escrevo estas palavras sentada na varanda onde tantas vezes sonhei com paz e sossego. O António dorme no berço improvisado no meu quarto; o Miguel saiu para mais uma entrevista; a Sofia tenta dormir algumas horas seguidas.
Pergunto-me: será este o preço do amor? Será possível partilhar um lar sem perdermos quem somos? Quantas mães há por aí a viver entre silêncios e saudades dentro das suas próprias casas?
E vocês? Já sentiram que deixaram de pertencer ao vosso próprio espaço? O que fariam no meu lugar?