Quando a Família se Torna Estranha: A Minha História em Lisboa
— Não me venhas com histórias, Mariana! — gritou o meu irmão, Miguel, batendo com a mão na mesa da cozinha. O som ecoou pelo apartamento antigo, misturando-se com o cheiro a café queimado e a tensão que pairava no ar desde o funeral do avô António.
Eu queria responder, mas as palavras ficaram-me presas na garganta. Olhei para a minha mãe, sentada à cabeceira da mesa, os olhos vermelhos de tanto chorar. O testamento estava ali, aberto entre nós, como uma ferida exposta. “A casa da Graça fica para Mariana”, dizia o papel, com a assinatura trémula do avô no fundo. Nunca pensei que uma frase tão simples pudesse destruir tudo o que conhecíamos.
Miguel levantou-se de rompante. — Isto é uma injustiça! Sempre fui eu que cuidei dele quando ficou doente. Tu só aparecias aos fins de semana, Mariana! — A sua voz tremia de raiva e mágoa.
— Miguel, por favor… — tentei apaziguar, mas ele já não me ouvia. O meu irmão era o meu melhor amigo em criança. Partilhávamos segredos, sonhos e até o medo do escuro. Agora, olhava para mim como se eu fosse uma estranha.
A minha mãe, Teresa, tentou intervir. — Filhos, não se magoem por causa disto. O vosso avô tinha as suas razões…
— Razões? — interrompeu Miguel, sarcástico. — Claro! A Mariana sempre foi a preferida. A menina dos olhos dele.
Senti uma dor aguda no peito. Não era verdade. O avô António era um homem difícil, mas nunca fez distinções entre nós. Ou pelo menos era nisso que eu queria acreditar.
Os dias seguintes foram um pesadelo. Miguel deixou de me falar. Passava pela casa da mãe sem olhar para mim. As tias começaram a ligar-me, umas a dar-me força, outras a lançar insinuações venenosas:
— Olha que o teu irmão não está bem… — dizia a tia Rosa ao telefone. — Isto da casa… não sei se vale a pena tanta confusão.
Eu própria já não sabia. A casa da Graça era mais do que paredes e telhado; era onde passámos todos os Natais, onde aprendi a andar de bicicleta no pátio, onde o avô me ensinou a jogar dominó nas tardes de verão. Mas agora sentia-me culpada por ser herdeira de algo que parecia amaldiçoado.
Uma noite, acordei sobressaltada com uma mensagem de Miguel: “Espero que estejas feliz. Perdeste um irmão.” Chorei até adormecer de novo, abraçada à almofada como se fosse o último vestígio de carinho que me restava.
A minha mãe definhava diante dos meus olhos. Deixou de cozinhar, de cuidar das plantas na varanda. Passava os dias sentada no sofá, a olhar para fotografias antigas. Um dia, sentei-me ao lado dela e tentei puxá-la para mim:
— Mãe, desculpa… Não queria isto.
Ela acariciou-me o cabelo com mãos trémulas. — Eu sei, filha. Mas há coisas que não conseguimos controlar.
O tempo foi passando e a casa tornou-se um símbolo do nosso afastamento. Miguel contratou um advogado para contestar o testamento. Recebi cartas formais, frias como gelo:
“Exmo(a). Senhor(a),
Venho por este meio informar que o meu cliente pretende impugnar o testamento do falecido António Silva…”
Cada envelope era uma facada nova. Os vizinhos começaram a cochichar quando me viam entrar ou sair. “Lá vai ela, a herdeira…”, ouvi uma vez no elevador.
No meio disto tudo, perdi o emprego numa editora pequena em Campo de Ourique. A crise apertava e eu já não tinha cabeça para nada. Passei dias fechada em casa, sem conseguir sair da cama.
Foi então que recebi uma visita inesperada: o meu primo João apareceu à porta com um saco de pastéis de nata e um sorriso triste.
— Mariana, não podes deixar que isto te destrua — disse ele, sentando-se ao meu lado na sala vazia.
— Já perdi tudo, João… O Miguel odeia-me, a mãe está doente e eu nem sei se quero esta casa.
Ele ficou em silêncio durante uns segundos e depois apertou-me a mão.
— Às vezes temos de perder tudo para perceber o que realmente importa.
As palavras dele ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. Comecei a pensar se valeria mesmo a pena lutar por aquela casa. O advogado ligava-me quase todos os dias; as despesas acumulavam-se; a minha saúde mental estava por um fio.
Certa tarde, fui até ao miradouro da Senhora do Monte e sentei-me a olhar Lisboa ao entardecer. As luzes acendiam-se devagarinho e senti uma saudade imensa dos tempos em que éramos todos felizes naquela casa.
Decidi então marcar um encontro com Miguel. Liguei-lhe dezenas de vezes até ele atender:
— O que queres agora? — perguntou ele, seco.
— Só quero falar contigo. Por favor.
Encontrámo-nos num café perto do Rossio. Ele estava magro, olheiras fundas e um olhar duro que me cortou o coração.
— Miguel… Eu desisto da casa — disse-lhe assim que nos sentámos. — Não aguento mais isto. Prefiro ter o meu irmão de volta.
Ele ficou em silêncio durante muito tempo. Depois baixou os olhos e murmurou:
— Não sei se consigo perdoar-te tão cedo…
Saí dali sem saber se tinha feito bem ou mal. Mas pela primeira vez em meses senti-me leve.
A minha mãe melhorou um pouco depois disso; voltou a sorrir de vez em quando e até fez arroz doce num domingo à tarde.
Miguel e eu ainda não recuperámos tudo o que perdemos, mas começámos a falar devagarinho outra vez. A casa acabou por ser vendida e dividimos o dinheiro entre todos os primos e tios.
Hoje olho para trás e pergunto-me: valeu mesmo a pena lutar por algo material quando quase perdi tudo o que me dava sentido? Será que as famílias portuguesas estão condenadas a repetir estes dramas geração após geração? E vocês? Já passaram por algo assim?