Quando a Família Invade: O Dia em que a Minha Casa Deixou de Ser Minha
— Vais ter de te habituar, Mariana. Eles vêm mesmo — disse a minha irmã, Joana, com aquela voz baixa que só usava quando as coisas eram sérias.
O meu coração batia tão forte que quase não ouvia o resto. A tia Rosa e o Miguel, o primo que só via nos Natais, vinham morar connosco. No meu apartamento. O apartamento que eu tinha comprado com tanto esforço, depois de anos a viver em quartos arrendados e a saltar de casa em casa por Lisboa.
— Mas porquê? — insisti, já com as mãos frias. — A mãe não me diz nada! Só me manda esperar e confiar.
Joana encolheu os ombros, mas vi nos olhos dela que sabia mais do que dizia. — Não posso ser eu a contar-te. Fala com a mãe.
Falei. Liguei-lhe três vezes nesse dia. A resposta foi sempre a mesma:
— Mariana, é família. Vais perceber quando chegar a altura.
E assim fiquei, suspensa no vazio, com uma ansiedade que me tirava o sono. O apartamento era pequeno: dois quartos, uma sala minúscula, uma cozinha onde mal cabiam duas pessoas. Eu tinha finalmente conquistado o meu espaço, depois de anos de sacrifícios, e agora ia partilhá-lo com pessoas que mal conhecia?
A tia Rosa era irmã da minha mãe, mas sempre foi um mistério. Vivia no Porto, raramente vinha cá abaixo. O Miguel era mais novo do que eu uns cinco anos; lembro-me dele miúdo, sempre calado nos cantos das festas de família. A irmã dele, a Inês, tinha ido estudar para fora e nunca mais voltou.
Na semana seguinte, chegaram. Vieram com malas enormes e olhares cansados. A tia Rosa parecia ter envelhecido dez anos desde a última vez que a vi; o Miguel estava mais alto, mas ainda com aquele ar de quem não quer incomodar ninguém.
— Obrigada por nos receberes, Mariana — disse-me a tia Rosa, abraçando-me com força demais.
— Claro… — respondi, sem saber onde pôr as mãos.
As primeiras noites foram um caos. O Miguel ficava acordado até tarde no sofá da sala, com os fones nos ouvidos e o telemóvel na mão. A tia Rosa chorava baixinho no quarto dela, mas eu ouvia tudo através das paredes finas. A minha rotina desfez-se: já não conseguia tomar o pequeno-almoço em silêncio, nem ver as minhas séries à noite sem sentir que estava a invadir o espaço deles.
Tentei falar com a minha mãe outra vez:
— Mãe, isto não pode ser para sempre! Eu preciso do meu espaço…
Ela suspirou do outro lado da linha:
— Mariana, há coisas que não percebes agora. A tua tia está a passar por um momento difícil.
— Mas qual? — insisti.
— Não posso dizer-te. Ela tem de ser ela a contar.
Os dias passaram e as tensões aumentaram. Um dia cheguei a casa e encontrei o Miguel na minha cozinha, a fumar pela janela aberta.
— Aqui não se fuma! — gritei, sem conseguir controlar o tom.
Ele olhou para mim como se eu fosse uma estranha:
— Desculpa… Não volto a fazer.
Mas voltou. E eu comecei a sentir-me uma intrusa na minha própria casa.
A tia Rosa passava os dias fechada no quarto. Só saía para ir ao supermercado ou para cozinhar sopa — sempre sopa, como se quisesse curar alguma coisa dentro dela. Uma noite ouvi-a ao telefone:
— Não posso voltar para casa dele… Não posso! — soluçava ela.
O Miguel começou a chegar tarde a casa. Uma noite apareceu com um olho negro e um corte no lábio.
— O que aconteceu? — perguntei-lhe, assustada.
Ele encolheu os ombros:
— Nada. Só uma discussão na rua.
Mas percebi que era mentira. Liguei à Joana:
— Isto está insuportável! Eles escondem-me tudo! O Miguel anda metido em problemas e ninguém me diz nada!
A Joana hesitou antes de responder:
— Mariana… O marido da tia Rosa batia-lhe. Ela fugiu de casa com o Miguel porque ele ameaçou matá-los.
Senti o chão a fugir-me dos pés. De repente tudo fazia sentido: os olhos tristes da tia Rosa, o silêncio do Miguel, os segredos da minha mãe.
Naquela noite sentei-me ao lado da tia Rosa na sala escura.
— Desculpa… Eu não sabia — disse-lhe baixinho.
Ela olhou para mim com lágrimas nos olhos:
— Não queria incomodar-te, Mariana. Mas não tinha para onde ir.
O Miguel entrou na sala nesse momento e ficou parado à porta.
— Mãe… podemos ir embora amanhã? — perguntou ele, quase num sussurro.
A tia Rosa abanou a cabeça:
— Não temos para onde ir, filho.
Eu olhei para eles e percebi que não podia continuar assim. Mas também não podia expulsá-los. Passei noites sem dormir, dividida entre o desejo de ter o meu espaço de volta e a culpa por pensar nisso quando eles estavam tão perdidos.
As semanas passaram e as coisas pioraram antes de melhorarem. O Miguel começou a faltar à escola; um dia recebi uma chamada da diretora:
— Mariana? Sou a professora Carla. O Miguel não aparece há duas semanas… Está tudo bem?
Fui confrontá-lo:
— Miguel, tens de ir à escola! Não podes desistir agora!
Ele explodiu:
— Para quê? Para quê? A minha vida acabou! Nunca mais vou ter amigos! Nunca mais vou ter paz!
A tia Rosa chorava todos os dias. Eu gritava com ela sem querer:
— Não podes deixar o teu filho desistir assim!
Ela só me olhava com aqueles olhos vazios.
Um dia perdi as forças e liguei à minha mãe aos gritos:
— Isto não é justo! Eu não sou responsável por eles! Eu só queria viver em paz!
A minha mãe respondeu calmamente:
— Às vezes ser família é isto mesmo: carregar os outros quando eles não conseguem andar sozinhos.
Chorei nessa noite como há muito não chorava. Senti raiva deles, da minha mãe, do mundo inteiro — mas também senti vergonha por não conseguir ser melhor pessoa.
As coisas começaram lentamente a mudar quando aceitei que aquela situação não ia acabar tão cedo. Comecei a ajudar o Miguel com os trabalhos da escola; levei-o ao psicólogo do centro de saúde do bairro. A tia Rosa arranjou um part-time numa pastelaria perto de casa e começou finalmente a sorrir outra vez.
Um dia sentei-me à mesa com eles e disse:
— Isto nunca vai ser fácil… Mas talvez possamos tentar ser uma família diferente daqui para a frente.
O Miguel sorriu pela primeira vez desde que chegou.
Hoje olho para trás e pergunto-me: teria feito diferente se soubesse tudo desde o início? Ou será que só aprendemos mesmo quando somos obrigados a sair do nosso lugar seguro? E vocês… até onde iriam por família?