Quando a distância se instala entre avó e neta: o silêncio de Olívia
— Por que é que a Olívia não me atende mais? — perguntei, tentando disfarçar o tremor na voz enquanto segurava o telemóvel com força.
A minha nora, Andreia, nem sequer olhou para mim. Estava a arrumar as compras na cozinha, como se a minha pergunta fosse apenas mais um ruído de fundo.
— A escola está a dar-lhe muito trabalho, sabe como é. Agora com os testes, os trabalhos de grupo… — respondeu, sem emoção.
Mas eu sabia que não era só isso. Desde que a Olívia tinha recebido o seu primeiro telemóvel, aos doze anos, não havia um dia em que não me mandasse uma mensagem: “Avó, o que fazes? Quando vens cá?” Era o nosso ritual. E agora, de repente, silêncio. Tentei ligar-lhe várias vezes, mas nunca atendia. As mensagens ficavam por ler. O meu filho, Miguel, dizia sempre que estava tudo bem, que eu estava a exagerar. Mas uma mãe sente quando algo está errado.
Naquele domingo, sentei-me no sofá da sala deles enquanto Andreia preparava o jantar. O Miguel estava na varanda a fumar um cigarro — hábito que eu nunca consegui tirar-lhe — e os miúdos fechados nos quartos. Senti-me uma estranha na casa onde já tinha passado tantas tardes a cuidar dos meus netos.
— Andreia, posso falar contigo um bocadinho? — arrisquei.
Ela pousou as mãos na bancada e olhou-me finalmente nos olhos.
— Diga.
— Sinto falta da Olívia. E do Tomás também. Eles quase não falam comigo…
Ela suspirou, como se estivesse cansada de uma conversa repetida.
— Dona Teresa, eles estão a crescer. É normal afastarem-se um pouco…
Mas não era normal. Não para nós. Sempre fui aquela avó que levava os netos ao parque, fazia bolos ao sábado, ajudava nos trabalhos de casa quando os pais trabalhavam até tarde. Quando a Andreia ficou desempregada há três anos, fui eu quem ficou com as crianças todos os dias. Nunca lhe virei as costas.
Naquela noite, voltei para casa com o coração apertado. Sentei-me à mesa da cozinha, rodeada pelo silêncio da minha casa vazia. Peguei no álbum de fotografias e folheei as páginas: ali estavam eles, pequeninos, de mãos dadas comigo no jardim zoológico; a Olívia com o avental manchado de farinha; o Tomás a rir-se com a boca cheia de bolo.
As lágrimas caíram-me sem pedir licença. O que é que eu tinha feito de errado?
Durante semanas tentei ignorar o vazio. Liguei à escola para perguntar se estava tudo bem com a Olívia — disseram-me que sim, que era uma boa aluna, mas notei hesitação na voz da professora. Tentei falar com o Miguel, mas ele limitava-se a dizer:
— Mãe, deixa as miúdas em paz. Elas têm a vida delas.
Miúdas? A minha neta tinha doze anos! O Tomás só nove! Como podiam já ter uma vida sem mim?
Um dia, decidi ir buscá-los à escola sem avisar ninguém. Esperei junto ao portão, como fazia antigamente. Quando a Olívia me viu, hesitou antes de vir ter comigo.
— Avó… — murmurou, olhando para os sapatos.
— Que saudades tuas! — abracei-a com força.
Ela não retribuiu o abraço como antes. O Tomás ficou ao longe, quase escondido atrás dos colegas.
— O que se passa? — perguntei baixinho.
A Olívia olhou-me nos olhos por um segundo e depois desviou o olhar.
— A mãe disse para não falarmos muito contigo…
O chão fugiu-me dos pés.
— Porquê? O que é que eu fiz?
Ela encolheu os ombros e ficou em silêncio. Levei-os até casa deles e despedi-me à porta, sentindo-me mais sozinha do que nunca.
Nessa noite não consegui dormir. Passei horas a pensar em tudo o que tinha feito pela família: os sacrifícios, as noites sem dormir quando as crianças estavam doentes, o dinheiro emprestado quando o Miguel ficou desempregado… E agora isto? Ser afastada sem explicação?
No fim-de-semana seguinte decidi confrontar o Miguel. Esperei até estarmos sozinhos na sala.
— Miguel, preciso que me digas a verdade. Porque é que a Andreia está a afastar os miúdos de mim?
Ele olhou para mim com ar cansado.
— Mãe… há coisas que tu não percebes…
— Então explica-me! — insisti, sentindo a voz tremer.
Ele suspirou fundo.
— A Andreia acha que tu te metes demasiado na nossa vida. Que criticas tudo: como ela educa os miúdos, como organiza a casa… Ela sente-se julgada por ti.
Fiquei sem palavras. Eu? Julgar? Sempre tentei ajudar! Sempre quis o melhor para eles!
— Eu só quero ajudar…
— Eu sei, mãe. Mas às vezes parece que não confias em nós para sermos pais dos nossos filhos.
Saí dali destroçada. Passei dias sem conseguir comer ou dormir direito. A Andreia evitava-me sempre que podia; os netos pareciam cada vez mais distantes.
Comecei a duvidar de mim própria: teria sido demasiado presente? Teria passado dos limites sem perceber?
Uma tarde chuvosa recebi uma mensagem inesperada da Olívia: “Avó, posso ir aí?”
O coração quase me saltou do peito. Respondi imediatamente: “Claro, meu amor!”
Quando ela chegou, vinha cabisbaixa e trazia uma mochila pequena às costas.
— O que se passa? — perguntei preocupada.
Ela sentou-se à mesa e começou a chorar baixinho.
— A mãe e o pai andam sempre a discutir por tua causa… A mãe diz que tu queres mandar em tudo… Eu só queria que tudo fosse como antes…
Abracei-a com força e deixei-a chorar no meu colo. Senti-me impotente perante tanta dor — dela e minha.
Nessa noite liguei ao Miguel e pedi-lhe para vir buscar a filha. Quando ele chegou, olhou para mim com tristeza nos olhos.
— Mãe… desculpa por tudo isto.
— Eu só queria ajudar… nunca quis causar problemas…
Ele abanou a cabeça.
— Às vezes ajudar demais também magoa…
Depois daquela noite decidi afastar-me um pouco. Parei de ligar todos os dias; deixei de aparecer sem avisar; tentei dar espaço à Andreia para ser mãe à sua maneira.
Os meses passaram devagarinho. Aos poucos fui recebendo mensagens da Olívia outra vez — pequenas coisas: “Avó, fiz um bolo sozinha!”, “Avó, tirei boa nota!”. O Tomás também voltou a pedir para vir dormir cá ao fim-de-semana.
A relação com a Andreia nunca voltou a ser igual — há feridas que demoram muito tempo a sarar — mas aprendi a respeitar os limites dela e do meu filho.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será possível amar demais? Até onde devemos ir para proteger quem amamos sem invadir o espaço deles? Será que alguma vez vou conseguir perdoar-me por ter causado tanta dor sem querer?