Quando a Cozinha se Torna um Campo de Batalha: A Minha Luta por Ser Suficiente
— Outra vez arroz, Mariana? — A voz do Rui ecoou pela cozinha, carregada de desdém. O prato ainda fumegava nas suas mãos, mas o olhar dele já me queimava mais do que qualquer panela esquecida no lume.
Apertei o pano de cozinha entre os dedos, sentindo o suor frio escorrer-me pela nuca. O Miguel, o nosso filho mais velho, olhou para mim com aquela expressão de quem já sabe o que vem a seguir. A pequena Inês, distraída com os desenhos na televisão, nem percebeu a tensão que pairava no ar.
— Se não gostas, faz tu — pensei, mas calei-me. Engoli as palavras como quem engole um caroço de azeitona: duras e difíceis de digerir.
Rui pousou o prato na mesa com força. — A minha irmã nunca repete refeições na mesma semana. E olha que ela também trabalha fora, Mariana. Não sei como é que ela consegue…
O nome da Sofia era uma sombra constante na nossa casa. Desde que me casei com o Rui, há quase dez anos, nunca houve mês em que não fosse comparada à irmã dele. Sofia era o padrão inalcançável: mãe de três, advogada de sucesso, sempre com bolos caseiros e jantares dignos de revista. Eu era apenas… eu.
— Mãe, posso sair depois do jantar? — Miguel tentou desviar o assunto, mas Rui nem lhe respondeu.
— Mariana, custa assim tanto variar? — insistiu ele, agora já mais baixo, como se quisesse poupar os filhos ao espetáculo. — Nem um frango assado consegues fazer como deve ser.
Senti as lágrimas a ameaçarem-me os olhos. Não era só pelo arroz. Era por tudo: pelas manhãs em que acordava antes do sol para preparar lanches; pelas noites em que adormecia no sofá com a roupa por passar; pelos domingos em que tentava juntar todos à mesa e acabava sozinha a arrumar os restos.
Lembrei-me da minha mãe. Ela dizia sempre: “O amor vê-se nos detalhes.” Mas aqui em casa, os detalhes eram invisíveis. Ou pior: eram alvo de crítica.
Naquela noite, depois de todos irem dormir, fiquei sentada à mesa da cozinha. O relógio marcava quase duas da manhã. O silêncio era pesado. Olhei para as minhas mãos: calejadas, com pequenas queimaduras dos cozinhados apressados. Perguntei-me se algum dia seriam suficientes.
No dia seguinte, tentei inovar. Procurei receitas na internet, liguei à minha tia Rosa para pedir dicas. Passei horas entre tachos e panelas, a experimentar um bacalhau à Brás como nunca tinha feito antes.
Quando Rui chegou a casa, o cheiro já invadia o corredor. Sorri-lhe, ansiosa por um elogio.
— O que é isto? — perguntou ele, franzindo o nariz.
— Bacalhau à Brás — respondi, tentando disfarçar o nervosismo.
Ele provou uma garfada e encolheu os ombros. — Está salgado.
Miguel olhou para mim e murmurou: — Está bom, mãe.
Mas Rui já tinha pousado o garfo. — A Sofia faz isto muito melhor. Devias pedir-lhe a receita.
Senti um nó na garganta. Fui à casa de banho e fechei a porta atrás de mim. Olhei-me ao espelho: olhos vermelhos, cabelo preso à pressa, uma mulher cansada demais para lutar por mais alguma coisa naquela noite.
Os dias passaram e cada refeição tornou-se um teste. Comecei a evitar cozinhar pratos novos; qualquer tentativa era recebida com críticas ou comparações. Até os miúdos começaram a perceber o ambiente pesado.
Uma noite, ouvi Miguel a falar com a irmã no quarto:
— A mãe está sempre triste porque o pai nunca gosta da comida dela.
Inês respondeu baixinho:
— Eu gosto das panquecas dela…
Senti uma dor aguda no peito. Era como se tudo aquilo fosse culpa minha: não ser suficiente para eles, não conseguir criar um lar feliz.
No domingo seguinte, Sofia veio cá jantar. Trouxe um tabuleiro de lasanha e um bolo de chocolate “feito à pressa” (como ela disse). Rui estava radiante; elogiou cada garfada como se fosse uma obra-prima.
Durante a sobremesa, Sofia virou-se para mim:
— Mariana, tens de experimentar esta receita! É tão fácil…
Sorri-lhe de volta, mas por dentro sentia-me pequena. Quase invisível.
Depois do jantar, enquanto arrumava a cozinha sozinha (como sempre), ouvi Rui ao telefone com a mãe dele:
— A Sofia é mesmo incrível… A Mariana bem tenta, mas não chega lá.
As palavras dele eram facas afiadas. Sentei-me no chão frio da cozinha e chorei baixinho para não acordar os miúdos.
Na segunda-feira seguinte, acordei sem vontade de sair da cama. Mas levantei-me na mesma; alguém tinha de preparar os lanches e garantir que todos saíam a horas.
No trabalho, a minha chefe perguntou-me se estava tudo bem. Disse-lhe que sim — ninguém quer ouvir dramas domésticos numa segunda-feira de manhã.
À hora do almoço, sentei-me sozinha no refeitório e escrevi uma lista das coisas que fazia pela família todos os dias: acordar cedo, preparar refeições, ajudar nos trabalhos de casa, lavar roupa, ouvir desabafos dos filhos… A lista era longa. Mas parecia nunca ser suficiente.
Nessa noite, decidi falar com Rui.
— Rui, preciso de falar contigo — disse-lhe enquanto ele via televisão.
Ele nem desviou o olhar do ecrã. — O que foi agora?
Sentei-me ao lado dele e respirei fundo.
— Sinto que nunca sou suficiente para ti. Que tudo o que faço é criticado ou comparado à tua irmã. Estou cansada disso.
Ele olhou finalmente para mim, surpreendido pela firmeza na minha voz.
— Mariana… Não é isso… Só quero o melhor para nós.
— E achas que me rebaixar todos os dias vai trazer esse “melhor”? — perguntei-lhe, sentindo as lágrimas a ameaçarem outra vez.
Ele ficou em silêncio durante uns segundos longos demais.
— Não sei… Desculpa se te faço sentir assim — murmurou ele finalmente.
Não era suficiente. Não era um pedido de desculpas verdadeiro; era só uma tentativa de calar o assunto.
Naquela noite dormi mal. Sonhei com mesas cheias de comida intocada e vozes a rir-se de mim ao fundo da sala.
No dia seguinte, decidi fazer algo diferente: não cozinhei nada para o jantar. Quando Rui chegou a casa e viu a mesa vazia, ficou perplexo.
— Então? Não há jantar?
Olhei-o nos olhos:
— Hoje não consegui ser perfeita. Hoje sou só eu.
Ele bufou e saiu para comprar comida feita. Os miúdos comeram cereais com leite e riram-se da “aventura” improvável daquela noite.
Senti-me estranhamente leve. Pela primeira vez em anos não me preocupei em agradar ninguém.
Nos dias seguintes comecei a impor pequenos limites: pedi ajuda nas tarefas domésticas; deixei de tentar competir com Sofia; comecei a sair mais com amigas depois do trabalho; voltei às aulas de pintura que tanto gostava antes de casar.
Rui estranhou as mudanças; tentou reclamar algumas vezes, mas eu mantive-me firme. Os miúdos começaram a ajudar mais em casa e até sugeriram receitas novas para fazermos juntos ao fim-de-semana.
A relação com Rui não melhorou muito — talvez porque ele nunca aprendeu a ver-me como alguém completo fora das suas expectativas. Mas eu aprendi a ver-me outra vez: como mulher, mãe e pessoa inteira.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres vivem presas nesta luta silenciosa por reconhecimento? Quantas vezes deixamos que nos digam que não somos “suficientes”?
E vocês? Já sentiram que tudo o que fazem nunca chega? Como encontraram forças para mudar?