Quando a Coragem se Torna Fuga: A Minha História de Ruptura
“Mãe, onde é que puseste o meu casaco azul?!”
A voz do Tiago ecoou pela casa, misturando-se com o barulho da máquina de lavar e o choro da Leonor. Senti o peito apertar. Mais um dia igual aos outros: levantar cedo, preparar pequenos-almoços, procurar roupas perdidas, limpar migalhas do chão, responder a perguntas sem fim. O João, meu marido, já tinha saído para o trabalho há horas, deixando-me sozinha com o caos doméstico. Olhei para o relógio: 7h45. Ainda faltava tanto para o dia acabar.
“Está na cadeira da sala, Tiago! Anda cá buscar!” gritei, tentando abafar o cansaço na voz. Ele apareceu à porta da cozinha, olhos semicerrados de sono e cara de poucos amigos. “Nunca encontro nada nesta casa”, resmungou. Respirei fundo para não responder à altura.
A Leonor chorava porque queria leite quente e não frio. O telefone tocou. Era a minha mãe: “Filha, não te esqueças que hoje tenho consulta e não posso ficar com as crianças à tarde.”
Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos. Não podia chorar. Não agora. Não à frente deles.
O dia passou como tantos outros: levar as crianças à escola, ir ao supermercado, limpar a casa, preparar o jantar. Quando o João chegou, nem um beijo me deu. Sentou-se no sofá com o telemóvel na mão e só levantou os olhos quando lhe pus o prato à frente.
“Está frio”, disse ele, sem sequer agradecer.
Foi nesse momento que percebi: já não era mulher, nem pessoa. Era uma sombra. Uma máquina de fazer tudo por todos e receber nada em troca.
Naquela noite, depois de todos dormirem, sentei-me na varanda com uma manta sobre os ombros. O silêncio era pesado. Peguei no telemóvel e escrevi uma mensagem à minha mãe: “Amanhã vou deixar as crianças contigo. Preciso de uns dias para mim.”
No dia seguinte, fiz as malas em silêncio. Deixei um bilhete ao João: “Preciso de respirar. As crianças ficam com a minha mãe.”
Fugi para o Algarve. Não sabia bem porquê — talvez porque sempre sonhei com o mar aberto e a promessa de liberdade. No comboio, olhei pela janela e chorei baixinho. Senti-me egoísta, mas também aliviada.
Cheguei a Lagos ao fim da tarde. O cheiro a maresia misturava-se com a culpa que me roía por dentro. Fiquei numa pensão barata perto da praia. Passei horas a caminhar na areia fria, tentando perceber quem era eu sem filhos, sem marido, sem obrigações.
No segundo dia, o telefone tocou sem parar. Mensagens do João: “Onde estás? Como foste capaz?” Da minha mãe: “Filha, volta para casa. As crianças perguntam por ti.”
Ignorei todas.
No terceiro dia, acordei com uma sensação de vazio tão grande que mal conseguia respirar. Fui ao café da esquina tomar um galão e um pastel de nata. A dona do café olhou-me com pena quando me viu sozinha.
“Está tudo bem consigo?” perguntou ela.
Quis responder que sim, mas as lágrimas caíram antes das palavras.
“Às vezes precisamos mesmo de fugir”, disse ela baixinho, passando-me um guardanapo.
Naquela noite sonhei com os meus filhos a chamarem por mim. Acordei sobressaltada e liguei à minha mãe.
“Mãe… como estão eles?”
“Estão bem, filha. Mas sentem a tua falta.”
O João atendeu o telefone depois:
“Não sei o que te passou pela cabeça! Achas que isto é vida? Achas justo deixares tudo para trás? Eu também estou cansado! Mas não fujo!”
Senti raiva e tristeza misturadas.
“Eu não fugi de vocês”, respondi num sussurro. “Fugi de mim mesma.”
Os dias passaram devagar. Comecei a escrever num caderno tudo o que sentia: raiva do João por nunca me ver; culpa por deixar os meus filhos; medo de nunca mais conseguir voltar a ser quem era antes do casamento; saudades da mulher que sonhava viajar pelo mundo e ser artista.
Uma tarde sentei-me num banco à beira-mar e vi um casal de idosos de mãos dadas. Sorriam um para o outro como se fossem cúmplices de uma vida inteira.
Perguntei-me: será que algum dia vou sentir isso? Ou será que já perdi essa hipótese?
No final da semana, decidi voltar para Lisboa. No comboio, senti o coração apertado — medo do reencontro, medo do julgamento.
Quando cheguei a casa da minha mãe, a Leonor correu para mim aos gritos:
“Mamã! Mamã!”
Abracei-a com força e chorei como nunca tinha chorado antes.
O Tiago olhou-me de lado:
“Vais fugir outra vez?”
Aquelas palavras doeram mais do que qualquer outra coisa.
O João apareceu à porta:
“Queres falar?”
Sentámo-nos os dois na cozinha da minha mãe. O silêncio era pesado.
“Eu não aguentava mais”, disse-lhe finalmente. “Senti-me invisível durante anos.”
Ele baixou os olhos:
“Eu também falhei contigo.”
Chorámos juntos pela primeira vez em muito tempo.
Decidimos procurar ajuda — terapia de casal, tempo para cada um de nós sozinho, dividir tarefas em casa. Não foi fácil nem rápido. Houve dias em que pensei em fugir outra vez.
Mas aprendi que fugir não resolve nada — só adia o confronto com aquilo que dói.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres vivem presas ao papel de cuidadoras até se perderem de si mesmas? E quantos homens se escondem atrás do trabalho para não verem o vazio em casa?
Será possível recomeçar depois de uma fuga? Ou há feridas que nunca saram?
E vocês? Já sentiram vontade de largar tudo? O que vos prende… ou vos faz voltar?