Quando a Coragem é a Última Saída: A Minha Fuga para o Algarve
— Mãe, por favor, atende! — sussurrei, com a voz embargada, enquanto o telemóvel tocava pela terceira vez. O relógio da cozinha marcava 6h47 da manhã e eu já sentia o peso do dia inteiro sobre os ombros. O cheiro do café queimado misturava-se ao som das crianças a discutir por causa dos cereais. — Mãe! — insisti, quase a implorar. Finalmente, ouvi a voz cansada do outro lado.
— O que foi agora, Inês? — perguntou ela, sem esconder o aborrecimento.
— Preciso que fiques com eles hoje. Não aguento mais. — A minha voz saiu num fio, quase inaudível.
— Outra vez, filha? O teu irmão também precisa de mim… — começou ela, mas interrompi-a.
— Por favor! Só hoje. — E desliguei antes que pudesse ouvir mais uma recusa.
O Rui entrou na cozinha nesse instante, ainda com o cabelo despenteado e o olhar perdido no telemóvel. Nem um “bom dia”, nem um “precisas de ajuda?”. Só um resmungo:
— Os miúdos já estão prontos? Vou chegar atrasado outra vez por tua causa.
Senti uma raiva surda a subir-me pelo peito. Peguei nas mochilas, empurrei as crianças para fora de casa e deixei-o ali, parado, como se nada fosse com ele. No carro, o silêncio era pesado. O João choramingava porque queria levar o peluche para a escola, a Matilde fazia birra porque queria ir de bicicleta. Eu só queria desaparecer.
Quando finalmente deixei os miúdos na escola e fui entregar as chaves à minha mãe, ela olhou-me de cima a baixo com aquele ar de quem nunca aprova nada.
— Vais fugir outra vez? — perguntou, seca.
— Não estou a fugir. Só preciso de respirar. — respondi, mas nem eu acreditava nas minhas palavras.
— Respirares? Isso é para quem pode, filha. Eu nunca tive esse luxo. — E virou-me as costas.
No caminho de volta ao carro, as lágrimas começaram a cair sem controlo. Sentei-me ao volante e fiquei ali parada, a olhar para o vazio. Lembrei-me dos meus sonhos de adolescente: queria ser jornalista, viajar pelo mundo, escrever livros… Agora era só mãe, só dona de casa, só esposa. “Só” tudo aquilo que me anulava.
Foi nesse momento que tomei a decisão mais impulsiva da minha vida. Liguei ao Rui:
— Olha, vou sair uns dias. Os miúdos ficam com a minha mãe. Preciso de tempo para mim.
Do outro lado, silêncio. Depois um riso nervoso:
— Estás maluca? Vais-me deixar sozinho com isto tudo?
— Não vais ficar sozinho com nada. A minha mãe fica com eles. Eu preciso disto. Por favor, entende.
Desliguei antes que pudesse voltar atrás.
Peguei numa mala pequena, enfiei umas roupas à pressa e apanhei o primeiro comboio para o Algarve. Não sabia bem para onde ia, só sabia que precisava de mar, de silêncio e de não ouvir ninguém chamar por mim.
Durante a viagem, o telemóvel não parou de vibrar: mensagens do Rui a chamar-me egoísta; da minha mãe a dizer que não era justo; da Matilde a perguntar quando voltava; do João a mandar corações desenhados no WhatsApp. Cada notificação era uma facada na culpa que já me consumia.
Cheguei a Lagos ao fim da tarde. O céu estava pintado de laranja e azul e o cheiro do mar fez-me chorar ainda mais. Arranjei um quarto numa pensão barata e passei horas sentada na varanda, a olhar para o horizonte como se lá estivesse uma resposta.
Na manhã seguinte, acordei com o som das gaivotas e uma estranha sensação de liberdade misturada com remorso. Fui até à praia deserta e deixei que as ondas me lavassem os pés gelados. Senti-me pequena diante daquela imensidão, mas pela primeira vez em anos senti-me viva.
Passei os dias seguintes entre caminhadas solitárias e cafés silenciosos. Escrevi páginas e páginas num caderno velho: desabafos, sonhos esquecidos, cartas que nunca enviei ao Rui nem à minha mãe. Comecei a lembrar-me de quem era antes dos filhos, antes do casamento, antes das expectativas dos outros.
Mas à noite, quando o silêncio se tornava ensurdecedor, a culpa voltava em força. Ouvia na cabeça as vozes da minha mãe: “As mães não fogem”; do Rui: “És egoísta”; até das outras mães no parque: “Eu nunca faria isso aos meus filhos”.
No terceiro dia recebi uma mensagem da Matilde: “Mãe, tenho saudades tuas”. O João mandou um áudio: “Mãe volta!”. Chorei tanto que pensei que nunca mais ia parar.
No quarto dia, o Rui ligou finalmente sem gritar:
— Inês… Quando é que voltas? Os miúdos estão a perguntar por ti todos os dias. A tua mãe está exausta. Eu… eu também sinto a tua falta.
Houve um silêncio estranho entre nós. Pela primeira vez em anos senti que ele estava vulnerável.
— Preciso de mais um dia — pedi baixinho.
— Está bem… Mas volta para nós, está bem?
Desliguei sem prometer nada.
Nessa noite fui jantar sozinha ao restaurante mais simples da vila. Uma senhora idosa sentou-se ao meu lado no balcão e puxou conversa:
— Está sozinha? — perguntou ela com um sorriso triste.
— Estou… Precisei de fugir um bocadinho da vida — confessei.
Ela riu-se baixinho:
— Às vezes é preciso fugir para depois voltar inteira.
Fiquei a pensar nessas palavras durante horas.
Na manhã seguinte apanhei o comboio de volta a Lisboa. O coração batia descompassado: medo do julgamento, saudades dos filhos, incerteza sobre o futuro com o Rui.
Quando cheguei à casa da minha mãe, ela olhou-me como se não soubesse se me devia abraçar ou dar uma bofetada.
— Estás melhor? — perguntou apenas.
Assenti em silêncio e fui buscar os miúdos ao quarto. Eles correram para mim como se eu tivesse estado ausente durante anos. Abracei-os com força e prometi baixinho que nunca mais me ia esquecer de mim própria no meio do caos deles.
O Rui apareceu à porta pouco depois. Não disse nada; só me puxou para um abraço desajeitado mas sincero.
À noite, já em casa, sentei-me sozinha na varanda enquanto todos dormiam. Olhei para as estrelas e perguntei-me: será que fui egoísta ou apenas humana? Quantas mulheres vivem presas numa vida que não escolheram? Será que temos direito a fugir para nos encontrarmos?