Quando a Confiança Quebra: O Silêncio Entre Nós
— Achas mesmo que eu não percebo? — A voz do Miguel ecoou pela cozinha, misturando-se com o barulho da chuva a bater nos vidros. Eu estava de costas, a mexer no arroz, mas as mãos tremiam tanto que quase deixei cair a colher. — Diz-me, Leonor. Diz-me agora.
O cheiro do refogado subia, mas eu só sentia o cheiro do medo. O medo de perder tudo, de admitir o que nem eu sabia explicar. Como é que se diz ao homem com quem partilhámos metade da vida que já não sabemos quem somos ao lado dele?
— Não sei do que estás a falar — menti, sabendo que ele via através de mim. Miguel sempre foi assim: olhos de lince, coração fechado. Casámo-nos cedo, eu com vinte e dois, ele com vinte e cinco. A família toda dizia que éramos o casal perfeito: ele engenheiro civil, eu professora primária, casa comprada em Almada, dois filhos lindos, férias no Algarve todos os anos.
Mas ninguém via as noites em branco, as discussões baixinho para não acordar os miúdos, os silêncios que se arrastavam dias inteiros. Ninguém via como me sentia sozinha mesmo quando ele estava sentado ao meu lado no sofá.
Naquela noite, Miguel não desistiu:
— Não brinques comigo, Leonor. O João viu-te no café com aquele tipo. O Rui. O teu colega da escola.
O nome dele caiu como uma pedra no meio da sala. Rui. O colega novo, sempre com piadas prontas e um sorriso fácil. Nunca aconteceu nada entre nós — pelo menos nada físico — mas era com ele que eu desabafava sobre os miúdos difíceis, sobre as reuniões intermináveis, sobre o vazio que sentia em casa.
Miguel aproximou-se e baixou a voz:
— Traíste-me?
O silêncio foi mais pesado do que qualquer resposta. Senti as lágrimas a quererem sair, mas engoli-as. Não queria dar-lhe esse poder.
— Não — sussurrei. — Só precisava de alguém para falar.
Ele riu-se, amargo:
— E eu? Não sou alguém?
Quis gritar-lhe que não era justo. Que eu tentei tantas vezes falar com ele, mas ele só sabia falar de trabalho, de contas para pagar, de futebol ao domingo com o pai dele. Quis dizer-lhe que me sentia invisível há anos. Mas calei-me. Porque em Portugal as mulheres ainda aprendem a calar-se para não estragar a família.
Os dias seguintes foram um inferno. Miguel passou a chegar tarde a casa, não me olhava nos olhos. Os miúdos — a Mariana com 12 anos, o Tomás com 9 — começaram a perguntar porque é que o pai estava sempre zangado.
Uma noite, Mariana entrou no meu quarto:
— Mãe, vocês vão divorciar-se?
O coração partiu-se-me em mil pedaços. Abracei-a com força:
— Não sei, filha. Mas amo-te muito.
Ela chorou baixinho no meu ombro. Senti-me a pior mãe do mundo.
No trabalho, Rui percebeu logo que algo estava errado.
— Estás bem? — perguntou-me à porta da sala dos professores.
Quis fugir dele. Quis fugir de mim própria.
— Não posso falar contigo — disse-lhe. — Está tudo a desmoronar-se.
Ele tocou-me no braço, um gesto tão simples e tão perigoso.
— Se precisares de mim…
Afastei-me antes que alguém visse.
Em casa, Miguel começou a vasculhar o meu telemóvel. Uma noite, encontrei-o na sala às escuras, a ler as minhas mensagens.
— Então é isto? — atirou-me o telemóvel para cima da mesa. — “Preciso de ti”? “Sinto-me sozinha”? És uma mentirosa!
Senti uma raiva antiga a crescer dentro de mim:
— E tu? Alguma vez quiseste saber como eu me sentia? Alguma vez perguntaste se eu era feliz?
Ele ficou calado. Pela primeira vez em anos, vi-o sem respostas.
A partir daí foi um arrastar de dias cinzentos. Fomos à psicóloga de casal — uma senhora chamada Dra. Teresa, muito calma e paciente — mas Miguel só falava para dizer que eu era ingrata e egoísta.
— Ela tem tudo! Uma casa boa, filhos saudáveis… E ainda assim precisa de outro homem para ser feliz!
Eu chorava em silêncio nas sessões. A Dra. Teresa tentava explicar-lhe que ninguém trai por acaso, que há sempre feridas antigas por sarar.
A minha mãe ligava-me todos os dias:
— Aguenta, filha. Os homens são assim mesmo. Não destruas a tua família por uma parvoíce.
Mas eu já não sabia se queria aguentar ou fugir dali para sempre.
Uma tarde, depois das aulas, sentei-me num banco do jardim da escola e liguei ao Rui.
— Preciso de falar contigo — disse-lhe.
Ele veio ter comigo e ouviu-me chorar durante meia hora sem dizer uma palavra. No fim, abraçou-me e eu deixei-me ficar ali, a sentir pela primeira vez em anos que alguém me via realmente.
Não aconteceu nada entre nós naquela tarde. Mas quando cheguei a casa e vi Miguel à porta à minha espera, soube que ele já não acreditava em mim.
— Vais sair de casa — disse ele, frio como gelo. — Ficas com as crianças esta semana. Depois logo se vê.
Arrumei algumas roupas numa mala pequena e fui dormir para casa da minha irmã em Setúbal. Os miúdos ficaram comigo durante uns dias; depois voltaram para o pai.
A solidão foi um soco no estômago. Passei noites inteiras a olhar para o teto do quarto da minha infância, a perguntar-me onde tinha falhado.
Os meus pais evitavam falar do assunto à mesa; só a minha irmã me dava apoio:
— Tu mereces ser feliz, Leonor. Não deixes que te façam sentir culpada por procurares isso.
Miguel pediu o divórcio dois meses depois. As conversas passaram a ser só sobre guarda partilhada e pensão de alimentos.
A Mariana deixou de me falar durante semanas; o Tomás chorava sempre que ia embora ao domingo à noite.
No meio disto tudo, Rui afastou-se discretamente. Percebi que ele nunca quis ser mais do que um ombro amigo — ou talvez tenha tido medo do escândalo numa vila pequena como Almada.
Voltei ao trabalho como se nada fosse; mas todos olhavam para mim como se soubessem tudo. As mães dos colegas dos meus filhos cochichavam à porta da escola; até algumas colegas começaram a evitar-me na sala dos professores.
Uma tarde encontrei Miguel no supermercado. Ele parecia mais velho; olhou para mim sem rancor:
— Espero que estejas bem.
Só consegui acenar com a cabeça antes de fugir dali com as lágrimas nos olhos.
Hoje vivo sozinha num T2 pequeno em Setúbal; vejo os meus filhos semana sim semana não. A Mariana já fala comigo outra vez; o Tomás diz que tem saudades dos tempos em que éramos todos juntos.
Às vezes pergunto-me se fiz bem em procurar fora aquilo que faltava cá dentro; outras vezes acho que só sobrevivi porque finalmente fui honesta comigo mesma.
Será que alguma vez podemos perdoar-nos por destruir aquilo que amámos? Ou será que amar também é saber quando é tempo de partir?