Quando a Casa Fica Vazia: O Eco dos Anos Que Passam
— Maria, não te esqueças de trazer o bolo! — gritava a minha mãe da cozinha, enquanto eu, ainda miúda, corria pela casa com os convites na mão. Era o meu aniversário e a casa enchia-se de vozes, risos e cheiros doces. Cresci assim: rodeada de gente, de barulho, de vida. Sempre fui a alma da festa, aquela que organizava os jantares de Natal, as sardinhadas de São João, os piqueniques improvisados no parque da cidade.
Mas hoje… hoje é diferente. Olho para o telemóvel pousado na mesa da sala. São dez da manhã e ainda não tocou. Nem uma mensagem. Nem um telefonema. O silêncio pesa-me nos ombros como um cobertor molhado. Tento não pensar nisso, mas é impossível. Lembro-me dos anos em que mal conseguia atender todas as chamadas, em que o Facebook explodia de notificações e os amigos faziam fila para me dar um abraço.
Levanto-me e vou até à janela. Lá fora, Lisboa acorda devagarinho. O elétrico passa, indiferente à minha solidão. Sinto uma pontada no peito — não de tristeza, mas de saudade. Saudade de mim mesma, daquela Maria que todos procuravam, que nunca estava sozinha.
Oiço o som da chaleira a ferver e volto à cozinha. Faço café para dois por hábito, mesmo sabendo que só eu vou beber. Sento-me à mesa e olho para a cadeira vazia à minha frente. Lembro-me do António, o meu marido, que partiu há três anos. Ele era o primeiro a dar-me os parabéns, sempre com um beijo na testa e um ramo de flores roubadas do jardim da vizinha.
— Maria, tu és o sol desta casa — dizia ele.
Agora sou apenas uma sombra do que fui.
O telefone vibra. O coração salta-me no peito. É só uma notificação do banco. Suspiro. Pego no telemóvel e percorro a lista de contactos. Quantos deles ainda fariam questão de me ligar? A Ana está em Londres há anos; trocamos mensagens no Natal e pouco mais. O João casou-se e mudou-se para o Porto; diz sempre que vai ligar, mas nunca liga. A Teresa… ah, a Teresa! Fomos inseparáveis durante décadas, mas uma discussão tola sobre política afastou-nos para sempre.
A verdade é que fui perdendo as pessoas aos poucos, quase sem dar por isso. Primeiro foi o trabalho: reformei-me e deixei de ver os colegas todos os dias. Depois os filhos: cresceram, foram estudar para fora, arranjaram empregos e famílias próprias. Agora ligam-me ao domingo à noite, por obrigação mais do que por vontade.
Oiço passos na escada do prédio e oiço a vizinha do lado a rir-se com alguém ao telefone. Sinto inveja daquela alegria simples, daquela ligação com o mundo lá fora.
Decido sair de casa. Visto o casaco — aquele azul que o António adorava — e desço até à rua. O ar fresco faz-me bem. Caminho sem destino pelas ruas do bairro, cumprimentando os poucos rostos familiares que encontro.
No café da esquina, sento-me ao balcão e peço um galão.
— Então, dona Maria! Hoje está mais bonita do que nunca — diz o senhor Manuel, o dono do café.
Sorrio, agradecida pelo gesto.
— Sabe que dia é hoje? — pergunto-lhe.
Ele hesita por um segundo.
— Não me diga que é o seu aniversário!
Assinto com a cabeça.
— Parabéns! Olhe, hoje o galão é por conta da casa!
Agradeço-lhe com um sorriso triste. Ele tenta puxar conversa:
— E os filhos? Já ligaram?
— Ainda não — respondo, tentando disfarçar a mágoa.
Ele percebe e muda de assunto. Fala-me do Benfica, das obras na rua ao lado, da filha que vai casar em breve. Eu ouço tudo com atenção fingida, mas a cabeça está longe.
De regresso a casa, encontro a caixa do correio vazia. Nem um postal. Subo as escadas devagarinho, sentindo cada degrau como um peso extra no corpo cansado.
Ao entrar em casa, o silêncio volta a envolver-me como uma manta fria. Sento-me no sofá e olho para as fotografias antigas espalhadas pela sala: festas cheias de gente, abraços apertados, gargalhadas congeladas no tempo.
Lembro-me de uma noite em particular: era o meu aniversário de 40 anos. A casa estava cheia até à porta da rua; havia música, vinho e bolo de chocolate feito pela minha mãe. O António dançava comigo na sala enquanto os amigos batiam palmas ao ritmo do fado que tocava na rádio.
— Promete-me que nunca vais deixar esta casa ficar vazia — sussurrou ele ao meu ouvido.
Prometi-lhe naquele dia. Mas falhei.
O telefone toca finalmente às quatro da tarde. É a minha filha mais nova.
— Mãe! Desculpa só agora ligar… O trabalho foi uma confusão hoje…
Ouço-lhe a voz apressada do outro lado da linha. Diz-me que me ama, pergunta se estou bem e promete vir visitar-me no fim-de-semana.
— Não te preocupes — minto eu — está tudo bem aqui.
Desligo e fico a olhar para o telemóvel na mão. Uma chamada em todo o dia.
Penso em ligar à Teresa, pedir desculpa pelo que aconteceu há anos atrás. Mas orgulho é coisa difícil de engolir quando se está sozinho.
Oiço vozes vindas da rua: crianças a brincar ao pião, vizinhas a conversar nas varandas. Sinto vontade de gritar: “Estou aqui! Ainda existo!” Mas limito-me a fechar as janelas e puxar as cortinas.
À noite preparo um jantar simples: sopa de legumes e pão torrado com azeite. Sento-me à mesa posta para um só e faço um brinde silencioso à minha própria companhia.
Antes de me deitar escrevo no diário:
“Hoje percebi que a solidão não chega de repente; ela instala-se devagarinho, como uma humidade nas paredes da alma. E quando damos por ela… já tomou conta de tudo.”
Apago a luz e fico a pensar: será isto envelhecer? Perder as pessoas uma a uma até restar só o eco das memórias? Ou será possível recomeçar mesmo quando tudo parece perdido?
E vocês? Já sentiram este vazio? O que fariam se acordassem um dia e percebessem que já não têm ninguém para quem ligar nos vossos anos?