Quando a Casa Deixa de Ser um Lar: O Dia em que a Minha Filha Quis que Eu Fosse para um Lar de Idosos
— Pai, precisamos mesmo de conversar. — A voz da Inês tremia, mas era firme. Eu estava sentado à mesa da cozinha, o cheiro do café ainda pairava no ar, misturado com o aroma doce das torradas que a minha neta, Mariana, tinha deixado no prato. Olhei para a minha filha, tentando decifrar o que vinha aí. O silêncio entre nós era pesado, quase sufocante.
— O que se passa, filha? — perguntei, já com o coração apertado.
Ela respirou fundo, desviando os olhos para a janela. — Não dá mais, pai. A casa é pequena. O Pedro precisa do escritório para trabalhar em casa e a Mariana vai precisar do quarto só para ela. Não temos espaço para todos…
Senti as palavras dela como uma bofetada. A minha casa. A casa onde vivi com a tua mãe, onde vi os meus filhos crescerem, onde plantei as roseiras no jardim e pintei as paredes de azul claro porque era a cor preferida da Rosa. Agora era pequena demais para mim?
— Estás a dizer-me que tenho de sair? — A minha voz saiu mais baixa do que queria.
Inês mordeu o lábio inferior. — Não é isso, pai… Só acho que talvez fosse melhor para ti… num lar. Lá tens companhia, cuidados… Aqui passas os dias sozinho quando estamos fora.
A raiva subiu-me ao rosto. — Achas mesmo que algum lar vai substituir esta casa? Achas que algum estranho me vai trazer o café como a tua mãe fazia? Ou contar-me histórias das vindimas como eu fazia contigo?
O Pedro entrou na cozinha nesse momento, tentando ser diplomático. — Sr. António, não é por mal… Só queremos o melhor para si.
Olhei para ele e vi nos olhos dele mais cansaço do que maldade. Mas isso não tornava as coisas mais fáceis. Senti-me um fardo.
Naquela noite não dormi. Fiquei sentado na sala, rodeado pelas fotografias antigas: eu e a Rosa no nosso casamento, Inês com os joelhos esfolados depois de cair da bicicleta, o João — meu filho mais novo, agora emigrado em França — com o seu sorriso maroto. Cada canto da casa tinha uma história minha.
No dia seguinte tentei falar com a Inês de novo. — Filha, eu posso ajudar mais em casa. Posso ir buscar a Mariana à escola, posso cozinhar…
Ela abanou a cabeça, os olhos marejados de lágrimas. — Não é isso, pai… Eu sinto-me culpada todos os dias por não conseguir dar-te tudo o que mereces. Mas estou exausta. O Pedro está sempre stressado com o trabalho, a Mariana precisa de atenção… E eu sinto que te estou a falhar.
Abracei-a com força. — Não me estás a falhar, filha. Só queria ficar aqui até ao fim dos meus dias.
Durante semanas, o ambiente ficou tenso. A Mariana começou a evitar-me, talvez por ouvir as discussões à noite atrás das portas fechadas. O Pedro tornou-se ainda mais distante. Senti-me cada vez mais invisível.
Um domingo à tarde, enquanto regava as roseiras, ouvi vozes vindas da sala. Era Inês ao telefone com o João.
— Ele não quer ir, João! Eu não sei mais o que fazer…
Fiquei parado, sem saber se devia entrar ou fugir dali. Ouvi o João dizer: — Deixa-o ficar, mana. Ele já perdeu tanto…
As lágrimas correram-me pelo rosto sem aviso. Senti-me velho pela primeira vez na vida.
Na semana seguinte fui visitar um lar sugerido pela Inês. O edifício era moderno, limpo, com jardins bem cuidados e funcionários simpáticos. Mas faltava-lhe alma. Faltava-lhe cheiro de café acabado de fazer e paredes cheias de fotografias tortas.
Quando voltei para casa encontrei a Inês sentada à mesa da cozinha, olhos vermelhos.
— Então? — perguntou ela.
Sentei-me à sua frente e peguei-lhe nas mãos.
— Filha… Eu sei que queres o melhor para mim. Mas esta casa é tudo o que me resta da tua mãe. Se eu sair daqui… é como se ela morresse outra vez.
Ela chorou baixinho e eu chorei com ela.
Nessa noite escrevi uma carta ao João:
“Filho,
A tua irmã acha que eu devia ir para um lar porque já não há espaço aqui para mim. Eu entendo-a… mas custa-me tanto deixar esta casa onde vivi tudo com a vossa mãe e convosco. Sinto-me um peso para eles. Não sei se estou a ser egoísta ou apenas velho demais para mudar.”
O João ligou-me dois dias depois.
— Pai, se quiseres podes vir viver comigo para França.
Sorri pela primeira vez em semanas. — Obrigado, filho… mas sabes que não sou capaz de deixar Portugal nem as minhas roseiras.
Os dias passaram e a tensão foi-se tornando rotina. Um dia acordei com dores fortes no peito e acabei no hospital. Fiquei internado uma semana e foi aí que percebi que talvez estivesse mesmo a precisar de mais cuidados do que queria admitir.
Quando voltei para casa encontrei um bilhete da Inês:
“Pai,
Desculpa por tudo isto. Amo-te muito e só quero ver-te feliz e seguro.”
Sentei-me no jardim junto às roseiras e chorei como uma criança perdida.
No fim daquele verão tomei uma decisão: aceitei ir para um lar perto da aldeia onde nasci, onde ainda tenho amigos de infância e onde posso visitar as sepulturas dos meus pais e da Rosa sempre que quiser.
No dia da mudança abracei a Inês e sussurrei-lhe ao ouvido:
— Obrigado por cuidares de mim mesmo quando dói.
Hoje escrevo estas palavras do meu novo quarto, rodeado por algumas fotografias antigas e um vaso com uma rosa do meu jardim.
Às vezes pergunto-me: será que fiz bem em sair? Será que uma casa é só paredes ou é feita das pessoas que amamos? E vocês? O que fariam no meu lugar?