Quando a Casa Deixa de Ser um Lar: Fuga, Desconfiança e a Dor da Solidão

— Mãe, para onde vamos? — sussurrou o Tiago, agarrado à minha mão com tanta força que quase me cortava a circulação. O relógio da igreja marcava duas da manhã e o silêncio das ruas de Setúbal era cortado apenas pelo som apressado dos nossos passos. A Leonor, com apenas cinco anos, soluçava baixinho, tentando não fazer barulho. Eu própria sentia o coração a bater tão alto que temi que ele nos denunciasse.

Nunca imaginei que aquela noite chegaria. Durante anos, aguentei os gritos do Rui, as portas a bater, os insultos que me faziam sentir menos do que nada. Aguentei por medo, por vergonha, por acreditar que um dia ele mudaria. Mas naquela noite, quando vi o olhar dele — aquele olhar vazio e frio — percebi que se ficasse mais um minuto, talvez não saíssemos vivos.

— Anda, Tiago. Só mais um bocadinho — tentei sorrir, mas a voz saiu-me trémula. O casaco dele era demasiado fino para o frio de janeiro. A Leonor tremia nos meus braços. Não tinha tempo para pensar em mim; só queria tirá-los dali.

O telemóvel vibrava no bolso com mensagens do Rui: “Volta já para casa ou juro que te arrependerás.” Apaguei-as sem ler até ao fim. Sabia do que era capaz.

A casa da Ana ficava a três ruas dali. Ela era minha amiga desde o liceu. Sempre me disse: “Se precisares de mim, estou aqui.” Lembrei-me dessas palavras enquanto subia as escadas do prédio dela, cada degrau uma esperança renovada.

Bati à porta com força, quase a implorar. Ouvi passos do outro lado. A Ana abriu uma fresta e olhou-me com olhos arregalados.

— Sofia? O que se passa?

— Por favor, Ana… Preciso de ajuda. O Rui… — não consegui acabar a frase. As lágrimas caíam-me pelo rosto sem controlo.

Ela olhou para trás e vi o marido dela, o Paulo, aparecer na entrada da sala. O olhar dele era duro.

— Não podemos meter-nos nesses problemas — disse ele, sem sequer me cumprimentar. — Temos filhos pequenos. Não quero confusões cá em casa.

A Ana hesitou, mas o Paulo puxou-a para dentro e fechou a porta devagar. Fiquei ali parada, com os meus filhos ao colo, a ouvir o som do trinco a rodar. Senti-me invisível.

Desci as escadas devagar, cada passo mais pesado que o anterior. O Tiago começou a chorar baixinho.

— Mãe… ninguém gosta de nós?

A pergunta dele ficou a ecoar-me na cabeça como um martelo. Tentei abraçá-lo, mas sentia-me vazia.

Não sabia para onde ir. Os meus pais moravam em Évora e sempre disseram que “os problemas de casal resolvem-se em casa”. A minha irmã estava emigrada em França. Os vizinhos… nem pensar. Todos sabiam dos gritos, mas ninguém nunca bateu à porta para perguntar se estava tudo bem.

Caminhámos pela cidade deserta até chegar à esquadra da polícia. Senti vergonha ao entrar ali de madrugada, como se fosse eu a criminosa.

— Boa noite… preciso de ajuda — disse ao agente de serviço, tentando não desmoronar.

Ele olhou para mim e depois para as crianças.

— Mais uma? — murmurou para a colega ao lado. — Sente-se ali e espere.

Esperei quase uma hora até alguém me atender. As crianças adormeceram encostadas uma à outra no banco duro da sala de espera. Quando finalmente me chamaram, contei tudo: os anos de insultos, as ameaças, o medo constante.

— Tem onde ficar esta noite? — perguntou-me a assistente social.

Abanei a cabeça.

— Vamos tentar arranjar-lhe vaga numa casa abrigo — disse ela, sem grande esperança na voz.

Enquanto esperava por uma resposta, pensei em tudo o que tinha deixado para trás: as fotografias dos aniversários das crianças, os desenhos da Leonor colados no frigorífico, o cheiro do café pela manhã… Tudo parecia tão distante agora.

Receberam-nos numa casa abrigo em Almada. O quarto era pequeno e frio; as paredes tinham marcas de humidade e cheirava a desinfetante barato. Mas ali ninguém gritava comigo. Ali podia dormir sem medo.

As outras mulheres olhavam-me com olhos cansados mas solidários. Partilhávamos silêncios pesados e sorrisos tímidos à mesa do pequeno-almoço.

Uma noite, enquanto aconchegava os meus filhos na cama improvisada, ouvi uma das mulheres chorar baixinho no corredor. Fui ter com ela — chamava-se Carla e tinha fugido do marido há três dias.

— Sentes-te sozinha? — perguntei-lhe.

Ela assentiu com lágrimas nos olhos.

— Ninguém acredita em nós — murmurou. — Acham sempre que exageramos…

Abracei-a como se fosse minha irmã. Pela primeira vez em muito tempo senti que não estava completamente sozinha.

Os dias passaram devagar. O Tiago começou a perguntar pelo pai; a Leonor desenhava casas com janelas grandes e corações nas paredes.

Recebi uma mensagem da Ana: “Desculpa… O Paulo não deixou mesmo.” Não respondi. Doía demasiado pensar que até quem nos prometeu apoio vira as costas quando mais precisamos.

Tentei arranjar trabalho para poder alugar um quarto só nosso. Fui a entrevistas onde me olhavam de cima abaixo quando dizia que estava numa casa abrigo. “Tem referências?”, perguntavam sempre. Como explicar que as minhas referências eram noites sem dormir e coragem arrancada à força?

Um dia recebi uma chamada da minha mãe:

— Sofia… O teu pai está muito zangado contigo. Diz que devias ter aguentado mais um pouco pelo bem dos teus filhos.

Senti raiva e tristeza misturadas.

— Mãe… achas mesmo que era vida para eles? Para mim?

Ela ficou em silêncio do outro lado da linha.

O tempo foi passando e fui reconstruindo pedaços de mim mesma. Arranjei um trabalho numa pastelaria; aluguei um pequeno estúdio em Cacilhas onde cabíamos os três apertadinhos mas felizes.

O Tiago voltou a sorrir; a Leonor aprendeu a andar de bicicleta no jardim em frente ao prédio.

Nunca mais falei com o Rui. Às vezes vejo-o na rua e sinto um frio na barriga, mas já não sou aquela mulher assustada de antes.

A Ana tentou reaproximar-se várias vezes; perdoei-a porque sei que o medo também paralisa quem está de fora. Mas nunca mais foi igual.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres continuam presas porque ninguém lhes abre a porta? Quantos amigos fecham os olhos ao sofrimento dos outros por medo ou conveniência?

Se tivesse ficado calada… teria sobrevivido? Se tivesse batido noutra porta… alguém teria aberto?

E vocês? O que fariam se alguém vos pedisse ajuda no meio da noite?