Quando a Casa Deixa de Ser um Lar: Confissões de uma Mulher Traída
— Não podes estar a falar a sério, Miguel! — gritei, a voz rouca e fraca, enquanto segurava o telemóvel com mãos trémulas. O cheiro a desinfetante do hospital misturava-se com o sabor amargo da traição que me queimava a garganta. Do outro lado da linha, o silêncio dele era ensurdecedor.
— Inês, eu… não sabia como te dizer — murmurou, finalmente. — Preciso de alguém ao meu lado. Tu estás sempre doente, sempre longe…
As palavras dele ecoaram na minha cabeça como um trovão. Eu estava internada há duas semanas no Hospital de Santa Maria, em Lisboa, depois de uma crise de lúpus que quase me levou. E agora, ali, sozinha numa cama fria, descobria que o homem com quem partilhava a vida há dez anos tinha levado outra mulher para o nosso apartamento em Benfica.
Lembro-me de olhar para o teto branco, as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto. Oiço ainda hoje o bip das máquinas misturado com o som abafado do choro que tentei esconder da enfermeira.
No dia seguinte, pedi à minha mãe que fosse buscar umas roupas ao apartamento. Ela hesitou ao telefone.
— Inês, não achas melhor deixares isso para depois? — perguntou, evasiva.
— Mãe, preciso das minhas coisas. Por favor.
O silêncio dela foi pior do que qualquer resposta. Só mais tarde percebi porquê: ela já sabia. Quando finalmente apareceu no hospital, trazia uma mala pequena e o olhar baixo.
— O Miguel explicou-me tudo — disse ela, sem me encarar. — Ele está cansado, filha. Tens de compreender.
Senti o chão fugir-me dos pés. A minha própria mãe, a mulher que me embalou nos braços quando era criança, agora pedia-me para compreender o incompreensível. Não consegui conter a raiva.
— Compreender? Que ele me traia enquanto estou doente? Que leve outra mulher para a minha casa? — gritei, ignorando os olhares das outras pacientes.
Ela encolheu os ombros.
— A vida é assim, Inês. Os homens têm necessidades. Tu tens estado tão ausente…
Foi nesse momento que percebi que estava verdadeiramente sozinha.
Os dias seguintes foram um nevoeiro de exames médicos e noites em claro. A enfermeira Carla tornou-se a minha única confidente.
— Não deixes que te destruam — sussurrou ela uma noite, enquanto me ajudava a mudar o soro. — Já vi muitas mulheres passarem por isto. Mas tu és forte.
Eu queria acreditar nela, mas cada vez que fechava os olhos via o rosto do Miguel e da tal mulher — Rita, soube depois — sentados no sofá da minha sala, a rirem-se das minhas fotografias na estante.
Quando tive alta, regressei ao apartamento apenas para encontrar metade das minhas coisas encaixotadas no corredor. O Miguel não estava. A Rita também não. Mas havia vestígios dela por todo o lado: um lenço esquecido na casa de banho, um batom encostado ao espelho do quarto.
Sentei-me no chão da sala e chorei até não ter mais lágrimas. Lembrei-me de todas as vezes que perdoei pequenas traições do Miguel: as mensagens suspeitas, os serões passados fora com desculpas esfarrapadas. Sempre achei que o amor era mais forte do que tudo. Mas ali percebi que tinha sido apenas medo da solidão.
A minha mãe ligou-me nessa noite.
— Não podes ficar aí sozinha — disse ela. — Vem para casa.
Mas eu não queria voltar à casa onde cresci, onde as paredes estavam impregnadas de silêncios e mágoas antigas. Recusei.
— Preciso de aprender a viver sozinha — respondi-lhe.
Os dias foram passando devagar. Arranjei um trabalho remoto numa editora pequena em Campo de Ourique. As noites eram longas e frias, mas comecei a encontrar algum consolo nos livros e nas caminhadas pelo Jardim da Estrela.
Certa tarde, cruzei-me com o Miguel na rua. Ele vinha de mão dada com a Rita. Quando me viu, hesitou.
— Inês… — começou ele, mas eu levantei a mão para o calar.
— Não digas nada. Só quero saber porquê. Porquê agora? Porquê assim?
Ele baixou os olhos.
— Não consegui lidar com tudo isto. Com a tua doença… Senti-me impotente.
Ri-me amargamente.
— E achaste que trair-me era solução?
A Rita tentou intervir:
— Inês, desculpa… Eu não queria magoar ninguém…
Olhei-a nos olhos e vi apenas medo e insegurança. Não era uma vilã; era só mais uma mulher perdida à procura de amor em sítios errados.
Afastei-me deles sem olhar para trás.
A minha mãe continuava a ligar-me todos os domingos, insistindo para que perdoasse o Miguel ou pelo menos tentasse entender o lado dele. Mas eu já não queria entender nada nem ninguém. Queria apenas reconstruir-me dos cacos em que me tinha tornado.
Meses depois, numa manhã chuvosa de novembro, recebi uma carta da Rita. Dizia que tinha deixado o Miguel porque percebeu que ele nunca seria capaz de amar verdadeiramente ninguém enquanto não se amasse a si próprio. Pedia desculpa por tudo e desejava-me força.
Guardei a carta numa gaveta e nunca respondi.
Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente daquela que entrou no hospital meses antes: mais forte, mais dura talvez, mas também mais livre. Aprendi a viver com as minhas cicatrizes e até a gostar delas.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem histórias como a minha em silêncio? Quantas são traídas não só pelos maridos mas também pelas próprias mães? E será que alguma vez voltamos realmente a confiar depois de sermos traídas assim?
E vocês? Já sentiram que ficaram sozinhas quando mais precisavam? O que fariam se o vosso próprio lar se tornasse um lugar estranho?