Quando a Bondade se Torna um Peso: A História de Maria e Dona Helena

— Maria, desculpa incomodar-te outra vez, mas não consigo levantar-me da cama hoje… — ouvi a voz fraca de Dona Helena do outro lado da porta. O relógio marcava sete da manhã e eu já estava atrasada para o trabalho. Suspirei fundo, sentindo o peso do cansaço nos ombros, mas abri a porta com um sorriso forçado.

— Não se preocupe, Dona Helena. Vou já ajudar — respondi, tentando esconder a pressa na voz. Entrei no pequeno apartamento, onde o cheiro de medicamentos e chá de camomila se misturava ao aroma antigo dos móveis de madeira escura. A senhora estava pálida, os olhos fundos e as mãos trémulas.

Nunca me considerei especial. Apenas faço o que acho certo. Cresci em Almada, filha de pais trabalhadores, que sempre diziam: “Maria, se puderes ajudar alguém, ajuda. Um dia podes ser tu a precisar.” E foi assim que cresci — com o coração aberto e as mãos prontas para servir.

Dona Helena era minha vizinha há mais de vinte anos. Viúva há uma década, sem filhos por perto, sempre foi discreta e simpática. Trocávamos palavras rápidas no elevador ou junto às caixas do correio. Às vezes levava-lhe tomates da minha pequena horta no quintal do prédio. Ela sorria e dizia: “Maria, és um anjo.”

Mas naquele ano tudo mudou. Em fevereiro, Dona Helena caiu na rua e partiu o fémur. Voltou do hospital mais frágil do que nunca. Os sobrinhos vieram visitá-la uma vez — só uma — e depois desapareceram. O telefone dela tocava em vão. Eu não conseguia ignorar.

No início era só ir às compras ou buscar os medicamentos à farmácia. Depois comecei a fazer-lhe as refeições, limpar-lhe a casa, tratar das contas. O meu marido, António, começou a resmungar:

— Maria, não podes carregar o mundo às costas! Tens o teu trabalho, tens a nossa casa… E se um dia te acontece alguma coisa?

— António, ela não tem ninguém — respondia eu, sentindo-me dividida entre o dever e o amor.

A minha filha Inês também não entendia:

— Mãe, tu já tens idade para descansar! Porque é que tens de ser sempre tu? Os sobrinhos dela deviam ajudar!

Mas ninguém mais ajudava. E eu não conseguia virar costas.

Os meses passaram e o peso aumentou. Comecei a chegar atrasada ao trabalho no centro de saúde. A chefe chamou-me ao gabinete:

— Maria, compreendo que queira ajudar a vizinha, mas não pode prejudicar o serviço. Preciso de si aqui.

Senti-me envergonhada e impotente. À noite chorava baixinho na almofada para não acordar António. Sentia-me sozinha no meio da multidão.

Um dia, Dona Helena piorou subitamente. Liguei para o 112 e acompanhei-a ao hospital de Santa Maria. Passei horas na sala de espera, rodeada de estranhos com olhares cansados como o meu. Quando finalmente um médico apareceu, explicou-me que ela precisava de cuidados continuados.

— Tem família próxima? — perguntou ele.

— Só sobrinhos… mas não aparecem — respondi, sentindo um nó na garganta.

— Então vai ter de ser você a tratar do processo — disse ele, quase sem olhar para mim.

E assim fiquei responsável por tudo: papéis, telefonemas, reuniões com assistentes sociais. Os sobrinhos foram contactados pelo hospital mas recusaram-se a assumir qualquer responsabilidade.

— Não temos condições — disseram friamente ao telefone.

Voltei para casa exausta. António esperava-me na sala com ar preocupado:

— Maria, isto está-te a destruir…

— Não posso abandoná-la agora — respondi num sussurro.

Os dias tornaram-se pesados como chumbo. A minha vida girava entre o trabalho, a casa e o hospital. Comecei a esquecer-me das minhas próprias necessidades: deixei de ir ao cabeleireiro, parei de cuidar da horta, mal falava com os amigos.

Uma noite, depois de mais uma discussão com António sobre o tempo que passava fora de casa, sentei-me sozinha na varanda e olhei para as luzes da cidade. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim: porque é que tinha de ser sempre eu? Porque é que as pessoas fogem quando mais são precisas?

No hospital, Dona Helena piorava dia após dia. Um domingo à tarde sentei-me ao lado dela e segurei-lhe a mão magra.

— Maria… desculpa dar-te tanto trabalho… — murmurou ela com lágrimas nos olhos.

— Não diga isso… — respondi, mas senti um aperto no peito.

Na semana seguinte ela partiu em silêncio. Fui eu quem tratou do funeral — os sobrinhos apareceram apenas para assinar papéis e desapareceram logo depois.

Depois do enterro voltei para casa vazia e sentei-me à mesa da cozinha. António tentou consolar-me:

— Fizeste tudo o que podias…

Mas eu sentia-me vazia e traída pelo mundo. Ninguém agradeceu. Ninguém quis saber do esforço ou do sacrifício.

Passaram-se meses e ainda hoje me pergunto: valeu a pena? Será que fiz bem em carregar este peso sozinha? Ou será que devia ter pensado mais em mim?

Às vezes olho para o espelho e vejo uma mulher cansada mas com o coração limpo. E pergunto-me: se fosse outra vez chamada a ajudar… teria coragem de dizer não? E vocês? O que fariam no meu lugar?