Quando a Avó Escolhe: Entre o Meu Filho e o da Minha Cunhada

— Mãe, podes ficar com o Tomás só esta tarde? Preciso mesmo de descansar um pouco — pedi, com a voz embargada, enquanto embalava o meu filho de três meses nos braços. O cansaço era tanto que sentia os olhos arderem, e o corpo parecia pesar toneladas.

A minha sogra, Dona Lurdes, olhou-me por cima dos óculos, sentada no sofá da sala, rodeada pelos seus bordados e revistas de culinária.

— Ai, Sofia, eu já não tenho idade para essas correrias. O reumático não me larga e as costas já não aguentam. Sabes como é… — suspirou, ajeitando-se na almofada.

O silêncio que se seguiu foi tão pesado que quase abafou o choro do Tomás. O meu marido, Miguel, entrou na sala nesse momento e olhou para mim com um misto de pena e impotência. Sabíamos que não podíamos contar com ela, mas ouvir aquele “não” tão definitivo doeu mais do que eu esperava.

Durante semanas, tentei convencer-me de que era normal. Afinal, Dona Lurdes tinha acabado de fazer 60 anos e sempre se queixava das dores. Mas algo dentro de mim não encaixava. Lembrava-me de como ela falava com entusiasmo dos netos antes sequer de eu engravidar. “Quando vierem os bebés, vou ser a avó mais babada do bairro!” dizia ela nas festas de família.

O tempo passou. O Tomás crescia rápido e eu sentia-me cada vez mais isolada. A minha mãe vivia longe, em Viseu, e só podia ajudar de vez em quando. O Miguel trabalhava horas intermináveis no escritório. Eu estava sozinha com o bebé, a casa por arrumar e uma tristeza que me consumia devagarinho.

Até ao dia em que tudo mudou.

Era uma manhã de sábado quando o telefone tocou. Era a minha cunhada, Mariana, irmã do Miguel.

— Sofia! Já sabes? Estou grávida! — gritou ela do outro lado da linha, numa alegria contagiante.

Fiquei genuinamente feliz por ela. Mariana sempre quis ser mãe e lutou anos para engravidar. Partilhei a notícia com o Miguel e até Dona Lurdes parecia rejuvenescida quando soube.

— A nossa Mariana vai finalmente ser mãe! — exclamou ela, com os olhos brilhantes.

Os meses passaram depressa. Mariana teve uma gravidez difícil e Dona Lurdes estava sempre presente: ia às consultas com ela, ajudava a preparar o enxoval, fazia bolos para animar as tardes.

Quando a pequena Matilde nasceu, Dona Lurdes mudou-se temporariamente para casa da Mariana para ajudar nos primeiros tempos. Eu via as fotos no grupo da família: Dona Lurdes sorridente com a bebé ao colo, a dar banho à neta, a passear no jardim.

O Miguel começou a reparar na diferença.

— Achas normal isto? — perguntou-me uma noite, enquanto arrumávamos a cozinha. — A minha mãe nunca ficou connosco assim…

Encolhi os ombros, tentando não mostrar o quanto aquilo me magoava.

— Talvez agora esteja melhor das costas… ou talvez seja porque é filha dela…

O Miguel ficou calado, mas percebi que também se sentia traído.

As semanas passaram e Dona Lurdes continuava ausente da nossa vida. Quando vinha visitar-nos, falava apenas da Matilde: “A Matilde já sorri! A Matilde já segura o biberão! A Matilde isto… a Matilde aquilo…”

O Tomás olhava para ela com curiosidade, mas raramente recebia mais do que um beijo apressado na testa.

Um dia, não aguentei mais.

— Dona Lurdes — comecei, tentando controlar as lágrimas — porque é que nunca quis ficar com o Tomás? Porque é que para a Matilde tem sempre tempo e energia?

Ela ficou imóvel por um instante. Depois pousou o chá na mesa e olhou-me nos olhos.

— Sofia… eu sei que parece injusto. Mas a Mariana precisa mais de mim. Ela está sozinha…

— E eu? — interrompi, sentindo a voz tremer. — Eu também estou sozinha muitas vezes…

Ela desviou o olhar.

— Não é igual… tu és forte. Sempre foste. E eu… eu sinto-me mais à vontade com a Mariana. É minha filha…

Aquelas palavras caíram sobre mim como uma sentença. Não era só cansaço ou dores: era escolha. Era preferência.

O Miguel ouviu tudo da porta da cozinha. Aproximou-se devagar e falou baixo:

— Mãe… sabes o quanto isso nos magoa?

Dona Lurdes suspirou fundo.

— Eu amo todos os meus netos… mas às vezes o coração não sabe ser justo.

Depois disso, as visitas tornaram-se ainda mais raras. O Miguel afastou-se da mãe; eu tentava manter as aparências nas reuniões de família, mas sentia-me cada vez mais deslocada.

A Mariana percebeu que algo se passava e tentou aproximar-se:

— Sofia… desculpa se sentes que a mãe te deixou de lado. Ela sempre foi assim comigo também… sempre preferiu o meu irmão quando éramos pequenos. Agora parece que está a compensar tudo comigo.

Fiquei sem palavras. Afinal, talvez Dona Lurdes estivesse apenas a repetir padrões antigos, tentando corrigir erros do passado à custa do presente.

O tempo foi passando e aprendi a não esperar nada dela. Procurei apoio noutras pessoas: amigas, vizinhas, até colegas do trabalho que também eram mães recentes. Descobri uma força dentro de mim que nem sabia existir.

O Tomás cresceu saudável e feliz. Tornámo-nos ainda mais unidos como família nuclear — eu, Miguel e ele — aprendendo a valorizar quem realmente está presente.

Hoje olho para trás e vejo como aquela dor me transformou. Ainda dói ver as fotos da Matilde com a avó em festas de aniversário ou passeios no parque. Mas aprendi que amor de avó não é garantido só porque existe laço de sangue.

Às vezes pergunto-me: será que algum dia Dona Lurdes vai perceber o quanto nos magoou? Ou será que há feridas familiares que nunca chegam mesmo a sarar?