Quando a Amizade se Torna um Peso: O Fim de Vinte Anos com a Anabela
— Não tenho força para os teus problemas, Sofia. — As palavras da Anabela ecoaram no silêncio da minha sala, atravessando-me como uma lâmina fria. O telefone ainda estava quente na minha mão, mas o calor que sentia era só raiva e humilhação. Como é possível? Vinte anos de amizade e, no momento em que mais preciso, ela fecha-me a porta na cara.
Conheci a Anabela numa manhã chuvosa de novembro, no escritório de contabilidade onde ambas começávamos uma nova fase. Eu, recém-divorciada, com a Mariana a entrar na adolescência e o Miguel a tentar ser adulto antes do tempo. Ela, também a recuperar de um casamento falhado, com o Rui a viver entre duas casas e uma mãe que nunca aceitara o divórcio da filha. Sentámo-nos lado a lado, trocámos olhares cúmplices enquanto o chefe discursava sobre produtividade e, sem percebermos, começámos a partilhar cafés, almoços e, mais tarde, segredos.
A Anabela era tudo o que eu não era: falava alto, gesticulava muito, ria-se das próprias desgraças. Eu era mais contida, preferia ouvir antes de falar. Talvez por isso nos tenhamos completado tão bem. Ela precisava de alguém que a escutasse sem julgar; eu precisava de alguém que me arrancasse do silêncio.
Durante anos, fui o ombro onde ela chorava. Quando o Rui começou a dar problemas na escola, era comigo que ela desabafava. Quando a mãe lhe ligava para dizer que era uma vergonha ser divorciada, era eu que lhe preparava chá e dizia que ela era suficiente. Quando perdeu o emprego, fui eu que lhe ajudei a refazer o currículo e que lhe emprestei dinheiro para pagar a renda.
Mas não me importava. Era isso que faziam as amigas, não era? Pelo menos foi o que sempre pensei.
O tempo passou. As nossas filhas cresceram juntas, partilharam festas de aniversário e tardes de praia na Costa da Caparica. Os nossos filhos tornaram-se confidentes e cúmplices nas pequenas traquinices. Os natais eram passados em casas alternadas: um ano na minha sala apertada em Almada, outro ano no apartamento dela em Setúbal.
Mas havia sempre um padrão: quando eu precisava de falar dos meus problemas — do Miguel que começou a faltar às aulas, da Mariana que me gritava que me odiava cada vez que discutíamos — a Anabela ouvia com impaciência.
— Sofia, tens de ser mais dura com eles! — dizia ela, como se tudo fosse simples.
Eu calava-me. Não queria ser um peso. Afinal, ela já tinha tanto com que lidar.
No ano passado, tudo mudou. O meu pai adoeceu. Um cancro rápido e cruel levou-o em três meses. Senti-me perdida como nunca antes. Liguei à Anabela na noite em que recebi o diagnóstico.
— Preciso tanto de ti — disse-lhe, com a voz embargada.
Ela suspirou do outro lado da linha.
— Sofia… estou exausta. O Rui está impossível, a minha mãe não me larga… Não tenho força para os teus problemas agora.
Fiquei em silêncio. Não sabia o que dizer. Desliguei devagar e sentei-me no chão da cozinha, abraçada às pernas como uma criança assustada.
Nos dias seguintes tentei convencê-la a encontrar-se comigo. Mandei mensagens, liguei várias vezes. Ela respondia com monossílabos ou nem respondia. Quando finalmente aceitou tomar um café comigo, apareceu atrasada e passou metade do tempo ao telefone.
— Desculpa — disse ela ao sair apressada — mas tenho mesmo de ir buscar o Rui.
Fiquei ali sentada sozinha, olhando para a chávena vazia à minha frente.
Comecei a perceber que algo tinha mudado entre nós. Ou talvez nunca tivesse sido diferente — talvez eu é que nunca quis ver.
A doença do meu pai foi um processo solitário. A minha mãe estava devastada; os meus irmãos viviam longe e só vinham quando já não havia nada para fazer. Eu passava as noites no hospital, agarrada à mão dele enquanto ele delirava com febres altas.
Numa dessas noites, recebi uma mensagem da Anabela:
— Preciso falar contigo urgentemente! O Rui foi apanhado com droga na escola!
Larguei tudo e fui ter com ela ao carro estacionado à porta do hospital. Ela chorava descontroladamente; abracei-a e ouvi-a durante horas. Dei-lhe conselhos, ajudei-a a pensar em soluções, prometi-lhe que tudo ia correr bem.
No dia seguinte voltei para junto do meu pai, exausta e vazia.
Quando ele morreu, mandei-lhe uma mensagem curta: “O pai partiu.” Ela respondeu apenas: “Lamento muito.” Não apareceu no funeral.
Os meses seguintes foram um nevoeiro denso. Senti-me sozinha como nunca antes na vida. A Mariana foi estudar para Coimbra; o Miguel arranjou trabalho em Lisboa e vinha cada vez menos a casa. A minha mãe fechou-se no luto dela e eu fiquei presa entre silêncios e memórias.
Tentei reconstruir-me aos poucos: voltei a correr no parque, inscrevi-me num curso de cerâmica, comecei a sair com colegas do trabalho para jantares ocasionais. A Anabela afastou-se cada vez mais; as nossas conversas resumiam-se a mensagens rápidas sobre banalidades ou pedidos de ajuda dela.
Um dia decidi confrontá-la:
— Anabela, sinto falta da nossa amizade. Sinto que só me procuras quando precisas de alguma coisa…
Ela ficou em silêncio durante uns segundos longos demais.
— Sofia… tu sabes que gosto muito de ti, mas neste momento não tenho espaço para mais ninguém na minha vida. Estou cansada de ser sempre eu a resolver tudo sozinha.
Fiquei sem palavras. Eu? Sempre ela?
— Sabes quantas vezes estive ao teu lado? — perguntei-lhe, sentindo as lágrimas subirem aos olhos.
Ela encolheu os ombros:
— Não quero discutir isto agora.
E desligou-me o telefone na cara.
Foi nesse momento que percebi: talvez nunca tivéssemos sido amigas de verdade. Talvez eu tenha sido apenas um apoio conveniente para ela — alguém disponível para ouvir e ajudar, mas nunca digna do mesmo cuidado.
As semanas passaram e deixei de tentar contactá-la. Doeu muito mais do que qualquer divórcio ou perda anterior. Senti-me traída por alguém em quem confiei cegamente durante vinte anos.
Aos poucos fui encontrando outras pessoas: colegas do curso de cerâmica com quem partilho agora tardes de conversa fiada; vizinhas com quem tomo café ao domingo; até reatei laços antigos com uma prima afastada.
Mas há noites em que ainda pego no telefone e penso em ligar-lhe — contar-lhe uma novidade sobre os meus filhos ou pedir-lhe conselhos sobre um problema qualquer. Depois lembro-me das suas palavras frias: “Não tenho força para os teus problemas”.
Pergunto-me muitas vezes se fui ingénua ou apenas demasiado generosa. Será que as amizades verdadeiras existem mesmo? Ou será tudo uma questão de conveniência?
Se calhar todos nós já fomos Anabela ou Sofia em algum momento da vida… E vocês? Já sentiram este vazio depois do fim de uma amizade?