Quando a Amizade se Torna um Peso: A História de Marta e Sílvia

— Marta, desculpa, mas não encontro o teu avental. Podes ajudar-me? — ouvi a voz da Sílvia vinda da cozinha, enquanto eu tentava concentrar-me no trabalho no meu pequeno escritório improvisado. O tom dela era doce, mas por dentro senti um nó apertar-se no estômago. Mais uma vez, interrompia-me por algo trivial. Mais uma vez, eu era chamada a resolver um problema que não era meu.

Nunca imaginei que a minha vida chegasse a este ponto. Eu e a Sílvia éramos inseparáveis desde os tempos do liceu em Coimbra. Passámos juntas pelas dores do primeiro amor, pelas noites de estudo antes dos exames, pelos sonhos partilhados de uma vida melhor. Quando ela me ligou, há seis meses, com a voz embargada pelo choro e o coração despedaçado pelo divórcio, não hesitei um segundo: “Vem para minha casa, Sílvia. Aqui tens sempre um lugar.”

No início, tudo parecia natural. Ela chegou com duas malas e um olhar vazio. Eu preparei-lhe o quarto de hóspedes, fiz sopa de legumes como ela gostava e deixei-lhe um bilhete na porta: “Aqui és família.” Nos primeiros dias, falávamos até tarde, ríamos das nossas histórias antigas e chorávamos juntas as mágoas recentes. Mas, à medida que as semanas passaram, as pequenas rotinas começaram a pesar.

Sílvia não procurava trabalho. Dizia que precisava de tempo para se recompor. Eu compreendia, mas as contas não esperavam. O meu marido, João, começou a franzir o sobrolho cada vez que via a luz da sala acesa até tarde ou quando encontrava a loiça por lavar. Os meus filhos adolescentes começaram a reclamar que já não havia espaço para eles na sala porque “a tia Sílvia está sempre lá”.

Uma noite, depois do jantar, João puxou-me para o corredor.
— Marta, isto não pode continuar assim. A Sílvia está aqui há meses e não parece querer sair. Eu sei que é tua amiga, mas esta casa é nossa.
Senti-me dividida entre o dever de amiga e o papel de mãe e esposa. Tentei falar com Sílvia.
— Sílvia, já pensaste em procurar um emprego? Ou talvez um sítio só teu?
Ela olhou para mim como se eu tivesse acabado de trair todos os anos da nossa amizade.
— Achas que eu não quero? Achas que é fácil? Preciso de ti agora mais do que nunca.

A partir desse dia, algo mudou entre nós. Os silêncios tornaram-se mais longos. As tarefas domésticas começaram a cair todas sobre mim: era eu quem cozinhava, limpava e fazia compras. Sílvia passava horas no sofá, agarrada ao telemóvel ou à televisão. Quando lhe pedia ajuda, respondia com má vontade ou fazia tudo pela metade.

Certa manhã, acordei mais cedo para preparar o pequeno-almoço dos miúdos antes da escola. Entrei na cozinha e encontrei tudo desarrumado: loiça suja na pia, migalhas espalhadas pela bancada, o leite deixado fora do frigorífico. Respirei fundo e comecei a arrumar em silêncio. Senti uma lágrima escorrer-me pela face — não era só cansaço físico; era uma exaustão emocional profunda.

No fim de semana seguinte, decidi sair sozinha para caminhar junto ao Mondego. Precisava de clarear as ideias. Sentei-me num banco e liguei à minha mãe.
— Mãe, sinto-me uma estranha na minha própria casa. A Sílvia… parece que tomou conta de tudo.
— Filha, às vezes temos de pôr limites até às pessoas que mais amamos. Não podes carregar o mundo às costas.

Voltei para casa determinada a ter uma conversa séria com Sílvia. Encontrei-a na sala, rodeada por papéis e revistas.
— Sílvia, precisamos de falar.
Ela olhou para mim com ar cansado.
— Já sei o que vais dizer… Que estou a abusar da tua hospitalidade.
— Não é isso… — hesitei — Só quero que percebas que isto está a ser difícil para todos nós. Preciso do meu espaço, da minha rotina… Preciso de ti como amiga, não como responsabilidade.
Ela levantou-se abruptamente.
— Então é isso? Depois de tudo o que passámos juntas? Vais pôr-me na rua?
— Não te quero pôr na rua! Quero ajudar-te a reergueres-te… mas não posso fazer tudo sozinha.

A discussão subiu de tom. Vieram à tona mágoas antigas: recordações de favores nunca retribuídos, ressentimentos guardados desde os tempos da faculdade. Pela primeira vez em trinta anos, senti raiva da Sílvia — e dela para comigo.

Nos dias seguintes, mal nos falávamos. O ambiente em casa tornou-se insuportável. Os meus filhos evitavam a sala; João passava mais tempo no escritório; eu sentia-me invisível dentro das minhas próprias paredes.

Uma noite, ouvi Sílvia chorar no quarto de hóspedes. Hesitei antes de bater à porta.
— Posso entrar?
Ela acenou em silêncio. Sentei-me ao lado dela na cama.
— Desculpa… — murmurou — Não queria ser um peso para ti.
— Eu sei… Mas também preciso de cuidar de mim.
Abraçámo-nos como duas náufragas agarradas à mesma tábua de salvação.

No dia seguinte, Sílvia anunciou que ia procurar um quarto para alugar perto do trabalho temporário que finalmente arranjara numa loja do centro comercial. A despedida foi amarga e doce ao mesmo tempo: sabíamos que nada voltaria a ser como antes.

Agora, meses depois da sua partida, olho para trás e pergunto-me: será que fiz tudo o que podia? Ou será que há amizades destinadas a mudar quando a vida nos obriga a partilhar mais do que apenas segredos?

E vocês? Já sentiram que uma amizade vos sufocava? Até onde iriam por alguém que amam?