Quando a Amizade se Torna Peso: O Dia em que Disse Basta à Minha Vizinha
— Outra vez, Sofia? — ouvi a voz da minha mãe ecoar pela cozinha, enquanto eu tentava apressadamente preparar um lanche para a pequena Matilde, filha da minha vizinha do terceiro andar.
— Ela só precisa de mim por uma horinha, mãe. A Andreia está mesmo aflita, tem uma reunião importante — tentei justificar, mas a minha própria voz soava cansada, quase derrotada.
A verdade é que já não sabia distinguir se ajudava por vontade ou por obrigação. No início, quando a Andreia se mudou para o prédio, éramos apenas vizinhas. Depois tornámo-nos amigas. Lembro-me da primeira vez que me pediu para ficar com a Matilde: “Sofia, é só por meia hora, prometo!”. Senti-me útil, importante. A Matilde era um amor de criança e eu gostava de sentir que fazia parte daquela pequena família.
Mas as meias horas transformaram-se em tardes inteiras. Os pedidos tornaram-se exigências silenciosas. A Andreia já nem perguntava se eu podia — avisava-me. “Sofia, hoje deixo-te a Matilde às três, está bem?”. E eu, incapaz de dizer não, sorria e assentia.
A minha mãe começou a reparar. O meu irmão, Tiago, gozava comigo: “Qualquer dia mudas-te para casa da Andreia!”. Eu ria-me, mas por dentro sentia-me cada vez mais presa.
Uma tarde, enquanto tentava ajudar a Matilde com os trabalhos de casa e responder às mensagens do meu chefe — porque sim, também trabalho remotamente — ouvi o meu telemóvel vibrar. Era uma mensagem da Andreia: “Vou chegar mais tarde hoje. Consegues ficar com ela até às oito?”. Oito! Era sexta-feira, tinha combinado jantar com o Miguel, o meu namorado. Senti um nó na garganta.
— Matilde, querida, queres brincar um bocadinho sozinha? — perguntei-lhe, tentando disfarçar a ansiedade.
Ela sorriu e foi buscar os seus bonecos. Eu sentei-me no sofá e liguei ao Miguel.
— Sofia, outra vez? — a voz dele estava carregada de frustração. — Achas normal? Ela nem te paga!
— Não é assim tão simples… — tentei explicar.
— Não é simples porque tu não queres que seja! — atirou ele. — Tens de aprender a dizer não.
Desliguei sentindo-me miserável. O Miguel tinha razão? Estaria eu a ser ingénua? Ou apenas bondosa?
Quando finalmente a Andreia chegou, já passava das oito e meia. Entrou apressada, cheia de desculpas e promessas vazias.
— És mesmo uma amiga do coração! Não sei o que faria sem ti! — disse ela, abraçando-me rapidamente antes de desaparecer com a Matilde.
Fui para casa exausta. A minha mãe olhou para mim com aquele olhar que só as mães sabem dar.
— Sofia, tu não és mãe da Matilde. Tens de pensar em ti também.
Naquela noite não dormi. Revirei-me na cama a pensar em todas as vezes que pus os outros à frente de mim. Lembrei-me das festas que perdi, dos jantares cancelados, das horas extra no trabalho porque tinha passado o dia com a Matilde.
No sábado de manhã, decidi falar com a Andreia. O coração batia-me tão forte que parecia querer saltar do peito.
Toquei à campainha do terceiro andar. A Andreia abriu a porta com um sorriso cansado.
— Olá! Precisas de alguma coisa?
— Podemos falar um bocadinho? — perguntei, tentando manter a voz firme.
Sentámo-nos à mesa da cozinha dela. A Matilde brincava na sala.
— Andreia… eu gosto muito de ti e da Matilde, mas ultimamente sinto que estou a ser… sobrecarregada. Tenho o meu trabalho, a minha família… e preciso de tempo para mim também.
Ela ficou em silêncio durante uns segundos eternos.
— Não fazia ideia que te sentias assim… Pensei que gostavas de ficar com ela.
— Gosto! Mas preciso que me perguntes antes. Preciso de poder dizer não sem me sentir culpada.
A Andreia olhou para mim com olhos marejados.
— Desculpa… tens razão. Acho que me deixei levar pelo desespero e esqueci-me de ti como pessoa.
Saí dali mais leve, mas também cheia de dúvidas. Será que tinha sido demasiado dura? Será que ia perder uma amiga?
Nos dias seguintes, a Andreia não me pediu nada. Sentia falta da Matilde, mas também sentia alívio por ter tempo para mim. O Miguel ficou orgulhoso: “Finalmente!”. A minha mãe sorriu: “Era preciso”.
Passaram-se semanas até a Andreia voltar a bater-me à porta. Desta vez perguntou:
— Sofia, achas que podes ficar com a Matilde na próxima sexta-feira? Se não puderes, compreendo perfeitamente.
Sorri-lhe e disse que sim — porque queria e podia naquele dia.
Agora olho para trás e pergunto-me: quantas vezes deixamos que o medo de magoar alguém nos impeça de cuidar de nós próprios? Será egoísmo pôr limites ou é simplesmente amor-próprio? O que vocês fariam no meu lugar?