Promessas Quebradas: Entre o Amor de Irmãos e o Peso das Expectativas

— Prometi ao teu irmão que lhe dava dinheiro para o carro. Agora, vocês os dois que se entendam. — A voz da minha mãe ecoou pela cozinha, fria e cortante, enquanto eu segurava a chávena de café com tanta força que temi parti-la.

O meu irmão, o Tiago, olhou para mim com aquele ar de quem já sabia que ia sair por cima. Sempre foi o favorito, o menino dos olhos dela. Eu, a filha mais velha, sempre fui a responsável, a que não fazia ondas. Mas naquele momento, senti uma onda de raiva a crescer dentro de mim.

— Mãe, mas eu também preciso desse dinheiro. Disseste que ias ajudar-me com a entrada para o apartamento! — A minha voz tremeu, não sei se de frustração ou de medo de perder mais uma vez.

Ela encolheu os ombros, como se não fosse nada com ela. — Não posso fazer milagres. O vosso pai deixou-nos pouco e eu já estou cansada destas discussões.

O Tiago sorriu de lado. — Olha, mana, se quiseres podemos dividir. Mas sabes bem que eu preciso do carro para o trabalho. Tu ainda vives em casa.

Aquela frase ficou-me atravessada na garganta durante meses. Acabei por ceder, como sempre. O Tiago ficou com o dinheiro, comprou o carro. Eu continuei a apanhar o autocarro para o emprego e a adiar os meus sonhos.

Três anos passaram desde esse dia. Agora tenho uma filha de dois anos, a Leonor, e um marido, o Rui, que já não suporta ouvir falar da minha família. O Rui diz que vivo presa ao passado, que devia cortar relações e seguir em frente. Mas como é que se corta relações com uma mãe?

A minha mãe continua igual. Liga-me quando precisa de alguma coisa ou quando quer ver a neta. Nunca fala do dinheiro, nunca pergunta se preciso de ajuda. O Tiago aparece lá em casa com o carro novo, orgulhoso, e fala dos seus planos para viajar pelo país.

Uma noite, depois de mais uma discussão com o Rui sobre as contas da casa — estamos sempre no limite — sentei-me na varanda e chorei baixinho para não acordar a Leonor. Senti-me tão sozinha. Lembrei-me das palavras da minha mãe: “Vocês os dois que se entendam.” Como se fosse fácil.

No Natal passado, tentei falar com ela sobre tudo isto. Estávamos só as duas na cozinha, a preparar o bacalhau.

— Mãe, achas justo o que fizeste? Eu fiquei sem nada. O Tiago tem tudo e eu… — Não consegui acabar a frase.

Ela limpou as mãos ao avental e olhou-me nos olhos pela primeira vez em muito tempo.

— Filha, tu és forte. Sempre foste. O Tiago precisa mais de mim do que tu. Tu dás sempre a volta por cima.

Senti um nó no estômago. Não era justo ser castigada por ser forte. Não era justo ter de carregar tudo sozinha só porque sou capaz.

O Rui entrou na cozinha nesse momento e percebeu logo o ambiente pesado.

— Ainda estamos nisto? — perguntou ele, exasperado. — Rita, tens de pensar em nós agora. Na Leonor.

A minha mãe virou-se para ele:

— O que se passa entre mim e os meus filhos não é da tua conta.

O Rui saiu da cozinha a bufar. Eu fiquei ali presa entre dois mundos: o da família onde nasci e o da família que estou a tentar construir.

Os meses seguintes foram um teste à minha sanidade. O Rui começou a chegar mais tarde a casa, dizia que precisava de espaço. Eu tentava manter tudo em ordem: trabalho, casa, filha, contas… E sempre aquela sensação de injustiça a corroer-me por dentro.

Um dia, a Leonor ficou doente e precisei de pedir dinheiro emprestado para os medicamentos. Liguei à minha mãe:

— Mãe, podes ajudar-me? Preciso mesmo…

Ela suspirou do outro lado da linha.

— Filha, sabes que não posso estar sempre a dar-te dinheiro. Tens de aprender a desenrascar-te.

Desliguei sem dizer mais nada. Senti-me humilhada e traída.

O Tiago apareceu lá em casa nesse fim de semana para mostrar as fotos da viagem ao Gerês com os amigos. Falava alto na sala enquanto eu tentava adormecer a Leonor no quarto ao lado.

Quando voltei à sala, ele estava a rir-se com o Rui sobre futebol. Olhou para mim:

— Mana, devias sair mais vezes! Estás sempre tão tensa…

Não aguentei mais:

— Sabes porquê? Porque enquanto tu andas a passear pelo país com o dinheiro da mãe, eu estou aqui a tentar manter esta casa de pé!

O Rui levantou-se num salto:

— Rita!

O Tiago ficou calado durante uns segundos e depois encolheu os ombros:

— A mãe deu-me porque achou que eu precisava mais. Não fui eu que pedi.

Saí da sala antes que começasse a chorar outra vez.

Nessa noite, depois de todos irem embora e a Leonor finalmente adormecer, sentei-me no chão da cozinha e deixei as lágrimas correrem livremente.

No dia seguinte, decidi procurar ajuda psicológica. Não queria passar esta amargura para a minha filha. Comecei a perceber que talvez nunca fosse receber aquilo que achava justo da minha mãe ou do meu irmão. Mas podia tentar perdoar — não por eles, mas por mim.

As sessões ajudaram-me a ver as coisas de outra forma. Falei com o Rui sobre tudo o que sentia e ele começou a perceber melhor as minhas dores antigas.

Hoje ainda dói ver como as promessas quebradas podem dividir uma família. Ainda dói ver o Tiago ser tratado como o filho frágil enquanto eu sou sempre “a forte” que aguenta tudo sozinha.

Mas também aprendi que posso ser forte sem ser mártir. Que posso pedir ajuda sem vergonha. Que posso construir uma família diferente para a Leonor.

Às vezes pergunto-me: quantas famílias portuguesas vivem presas nestes ciclos de favoritismos e promessas não cumpridas? Será possível quebrar este ciclo? E vocês? Já sentiram este peso nas vossas famílias?