Promessa Quebrada: O Dia em Que Perdi Tudo Para o Meu Filho
— Mãe, confia em mim. Isto é só uma formalidade. — A voz do Rui tremia, mas os olhos dele evitavam os meus. O papel à minha frente parecia inofensivo, mas o peso da caneta na minha mão era como chumbo.
Assinei. Assinei porque era meu filho, porque sempre foi o meu menino, porque me prometeu que nunca me faltaria nada. E naquele instante, sem saber, deixei de ter um lar.
Chamo-me Maria do Carmo. Nasci em Viseu, filha de lavradores humildes. Cresci a ouvir o som das enxadas e a sentir o cheiro da terra molhada. Casei cedo com o António, homem trabalhador, mas de poucas palavras e muitos silêncios. Tivemos um filho, o Rui, e tudo o que fiz na vida foi por ele.
Quando o António morreu, o Rui já tinha vinte e poucos anos. Eu fiquei sozinha naquela casa grande demais para uma só pessoa, mas pequena demais para as saudades. O Rui vinha aos fins de semana, trazia-me pão fresco e notícias do mundo. Sempre dizia:
— Mãe, um dia vou voltar para cá. Quando fores velhinha, eu cuido de ti.
Acreditei. Porque uma mãe acredita sempre.
O tempo passou. O Rui casou-se com a Andreia, uma rapariga de Lisboa, cheia de sonhos e pressa. Tiveram dois filhos lindos, os meus netos adorados. Mas as visitas começaram a rarear. Primeiro eram os trabalhos do Rui, depois as actividades das crianças, depois… depois era só silêncio.
Um dia, o Rui ligou:
— Mãe, precisamos falar sobre a casa. Eu e a Andreia estamos a pensar mudar-nos para Viseu. As crianças precisam de espaço e tu já não consegues tratar disto tudo sozinha.
Senti um aperto no peito, mas também esperança. Talvez fosse bom ter companhia outra vez.
— Claro, filho. A casa é tua também.
— Não digas isso, mãe. A casa é tua. Mas se assinasses aqui uns papéis para facilitar as coisas… Assim podemos fazer obras, pedir empréstimos se for preciso… E tu ficas connosco até ao fim dos teus dias.
A Andreia apareceu com um sorriso forçado e uma pasta cheia de documentos. Falava depressa:
— Dona Maria, isto é só para regularizar tudo no nome do Rui. Assim fica tudo mais simples para todos.
Assinei. Porque era meu filho.
No início foi tudo igual. Eles mudaram-se para casa comigo. As crianças corriam pelo quintal, a Andreia reorganizou a cozinha — nunca mais encontrei as minhas panelas — e o Rui passava os dias ao telefone com Lisboa.
Mas aos poucos comecei a sentir-me hóspede na minha própria casa. A Andreia implicava com tudo:
— Dona Maria, não pode deixar os sapatos aqui! — gritava ela.
— Mãe, não mexas nos papéis do escritório — dizia o Rui.
Até os meus netos começaram a tratar-me como uma estranha.
Uma noite ouvi-os a discutir na cozinha:
— Não podemos continuar assim! — sussurrava a Andreia. — Ela está sempre aqui! Não temos privacidade!
— É minha mãe… — respondia o Rui, hesitante.
— Pois é tua mãe! Mas esta casa agora é nossa! Não foi para isto que viemos para Viseu!
No dia seguinte, o Rui veio ter comigo ao jardim.
— Mãe… eu e a Andreia achamos que talvez fosse melhor procurares um lar de idosos. Vais ter companhia da tua idade…
Senti o chão fugir-me dos pés.
— Rui… tu prometeste…
Ele desviou o olhar.
— Mãe, não compliques. Já assinaste os papéis. A casa agora é nossa responsabilidade.
Chorei nessa noite como nunca tinha chorado desde que perdi o António. No dia seguinte, encontrei as minhas roupas arrumadas em sacos no corredor.
— A Andreia já te marcou visita ao Lar São José — disse-me o Rui sem me encarar.
Fui embora com uma mala na mão e um nó na garganta. No lar, deram-me um quarto pequeno com vista para um muro cinzento. As outras senhoras olhavam-me com pena ou indiferença.
Durante semanas esperei uma visita do Rui ou dos meus netos. Vieram uma vez, trouxeram-me bolachas e sorrisos apressados.
— Temos de ir, mãe — disse o Rui ao fim de dez minutos.
Fiquei sozinha outra vez.
As noites são longas aqui. Oiço as outras velhas a chorarem baixinho nos seus quartos. Pergunto-me onde errei. Será que fui demasiado permissiva? Será que devia ter desconfiado?
Um dia recebi uma carta da minha vizinha de infância:
“Maria do Carmo, ouvi dizer que estás no lar. O Rui vendeu a casa? Dizem que vai construir uns apartamentos no terreno…”
O meu coração partiu-se outra vez.
Tentei ligar ao Rui. Não atendeu. Mandei-lhe uma mensagem:
“Filho, porquê?”
Nunca respondeu.
Hoje passo os dias sentada junto à janela do lar, a ver as sombras passarem no muro cinzento. Penso em todas as mães que confiam cegamente nos filhos e pergunto-me: será que algum dia ele se arrependerá? Será que algum dia vou perdoar?
E vocês? O que fariam no meu lugar? Como se sobrevive à traição de quem mais amamos?