Presentes Que Não Podem Ser Levados: O Peso do Amor dos Avós
— Não podes levar o comboio para casa, Tomás. — A voz da minha sogra ecoou pela sala, firme, quase fria, enquanto o meu filho olhava para mim com os olhos grandes, cheios de lágrimas contidas. — Mas avó, é meu! — protestou ele, agarrando com força o brinquedo caro, daqueles que eu nunca poderia comprar. Senti um nó na garganta. O meu marido, João, desviou o olhar, envergonhado.
Sou a Marta, tenho trinta e dois anos, e desde que casei com o João, aprendi que as diferenças não são só de feitio — são também de contas bancárias. Os meus sogros, a Dona Graça e o Senhor Álvaro, sempre fizeram questão de mostrar o quanto podiam dar ao neto. Vivem numa casa enorme em Cascais, com piscina aquecida e jardim impecável. Têm três propriedades, dois carros topo de gama e viajam pelo mundo como quem vai ao supermercado. Nós? Vivemos num T2 em Odivelas, com uma prestação ao banco que nos tira o sono todas as noites.
No início, achei que era generosidade. O Tomás nasceu e logo começaram a chover presentes: roupa de marca, brinquedos eletrónicos, bicicletas caríssimas. Mas havia sempre uma condição: “Fica aqui em casa para quando ele vier brincar.” No nosso apartamento não cabia metade daquilo, mas a verdade é que nunca nos deram sequer a hipótese de levar nada.
— Marta, percebes que aqui ele tem espaço para brincar à vontade — dizia a Dona Graça, com aquele tom doce que escondia uma ponta de desprezo. — No vosso apartamento não há condições para estes brinquedos.
Sentia-me humilhada. Não era só uma questão de espaço; era como se nos lembrassem constantemente da nossa posição. O João tentava apaziguar:
— Amor, eles só querem o melhor para o Tomás.
Mas eu via nos olhos do meu filho a frustração de ter brinquedos “emprestados”, de sentir que nada era realmente dele. E via em mim uma raiva crescente por não conseguir dar-lhe mais.
As discussões começaram a surgir entre mim e o João. Ele defendia os pais:
— Eles fazem isto por amor! Não vês?
— Amor? Ou é controlo? — respondia eu, já sem paciência. — O Tomás sente-se mal cada vez que tem de deixar os brinquedos cá!
Certa tarde, depois de mais uma visita à casa dos sogros, o Tomás chorou no carro:
— Mãe, porque é que os avós me dão coisas que não posso levar?
Não soube responder. Senti-me pequena, impotente. Queria protegê-lo daquela sensação de não pertencer completamente a lado nenhum.
As coisas pioraram quando o Tomás fez cinco anos. Os sogros organizaram uma festa digna de filme: palhaços, insufláveis, um bolo enorme com o Homem-Aranha em tamanho real. Todos os amigos do Tomás foram convidados — menos os meus pais. Quando questionei a Dona Graça:
— Achámos melhor assim. A família do João é mais chegada…
Fiquei furiosa. O João tentou intervir:
— Mãe, não podes excluir os pais da Marta!
Ela encolheu os ombros:
— Eles não iam sentir-se à vontade aqui.
A minha mãe ficou devastada. O meu pai nem quis falar sobre o assunto. Senti-me dividida entre duas famílias que pareciam viver em mundos diferentes.
No Natal desse ano, levei coragem e pedi aos sogros:
— Podem dar ao Tomás um presente simples para levar para casa? Só um.
O Senhor Álvaro olhou-me como se eu tivesse pedido um favor impossível:
— Marta, aqui ele tem tudo do bom e do melhor. Não percebo essa insistência.
O João ficou calado. Senti-me sozinha.
Comecei a evitar ir lá com tanta frequência. Preferia ver o Tomás brincar com os carrinhos velhos do primo do que vê-lo frustrado naquela mansão cheia de coisas proibidas.
Um dia, depois de mais uma discussão acesa com o João sobre este assunto, ele explodiu:
— Estás a criar problemas onde não existem! Os meus pais só querem ajudar!
— Ajudar? Ou mostrar que são melhores? — gritei eu, já sem filtros.
Ele saiu de casa nessa noite. Voltou tarde, cansado e triste.
— Não quero perder-te por causa disto — disse-me ele baixinho.
Chorámos juntos. Decidimos procurar terapia de casal. Precisávamos de aprender a comunicar sem magoar.
Na terapia percebi que o João sentia-se tão pressionado quanto eu. Cresceu sempre à sombra dos pais perfeitos, incapaz de lhes dizer “não”. Eu sentia-me inferiorizada por não conseguir dar ao Tomás aquilo que ele tinha na casa dos avós.
A terapeuta sugeriu um encontro com todos: nós e os sogros. Aceitaram relutantemente.
No dia marcado, sentámo-nos todos na sala deles — aquela sala enorme onde ecoavam as nossas vozes pequenas.
— Dona Graça, Senhor Álvaro — comecei eu — agradecemos tudo o que fazem pelo Tomás. Mas precisamos que compreendam: ele sente-se dividido. Precisa de sentir que pertence aos dois lados da família.
A Dona Graça suspirou:
— Só queremos dar-lhe tudo aquilo que nunca tivemos.
O João finalmente falou:
— Mãe… Pai… O Tomás precisa de sentir que as coisas são dele. Que pode levá-las para casa se quiser.
Houve silêncio. O Senhor Álvaro olhou para mim e depois para o neto:
— Não tínhamos percebido isso…
A partir desse dia as coisas mudaram devagarinho. Os presentes passaram a ser mais simples — e alguns podiam ir connosco para casa. O Tomás sorriu como nunca quando levou finalmente aquele comboio para o quarto dele.
Ainda há dias em que sinto inveja daquela vida fácil dos meus sogros. Mas aprendi que o amor não se mede em brinquedos caros ou festas luxuosas. Mede-se na capacidade de ouvir e ceder.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas famílias se deixam dividir pelo dinheiro sem perceberem? Será que conseguimos mesmo proteger os nossos filhos das diferenças entre mundos tão próximos e tão distantes?