Porta Fechada: Entre o Amor de Mãe e o Silêncio do Filho

— Não acredito, Miguel. Não acredito que não vais abrir a porta à tua mãe! — murmurei, com a voz embargada, enquanto batia novamente, mais forte, tentando abafar o tremor das minhas mãos. O corredor do prédio cheirava a mofo e a domingo parado, e eu sentia o peso das duas sacolas a cortar-me os dedos. O cheiro do meu rosól ainda subia quente pelas aberturas do saco, misturando-se com o aroma do pão acabado de cozer e do sernik que ele tanto adorava desde pequeno.

Olhei para o tapete gasto à porta dele — aquele mesmo que eu lhe oferecera quando se mudou para este apartamento, há três anos. Três anos desde que saiu de casa, três anos de silêncios e telefonemas cada vez mais curtos. Três anos em que me esforcei por não ser aquela mãe sufocante, mas também nunca consegui ser indiferente.

— Miguel! — insisti, agora mais baixo, quase como se pedisse desculpa por existir. Do outro lado, silêncio. Nem um passo, nem um som. Só o eco da minha voz e o latejar do meu coração.

Sentei-me no degrau, as pernas a tremerem. O saco do pão caiu ao meu lado e ouvi o estalido da crosta a partir-se. Lembrei-me de quando ele era pequeno e corria para a cozinha mal sentia o cheiro do pão no forno.

“— Mãe, posso comer já? — perguntava ele, os olhos brilhantes de fome e alegria.
— Espera só mais um bocadinho, filho. Está muito quente ainda.”

Agora, nem sequer me abria a porta.

O telefone vibrou no bolso do casaco. Era uma mensagem da minha irmã, Teresa: “Já estás com o Miguel? Dá-lhe um beijo por mim.”

Não respondi. Não sabia o que dizer. Como explicar que o meu próprio filho não queria ver-me? Que todo o esforço de uma vida parecia não ter valor nenhum?

Levantei-me devagar, ajeitei as sacolas e desci as escadas devagarinho, cada degrau mais pesado que o anterior. Lá fora, o céu estava cinzento, típico de Lisboa em março. O vento frio cortava-me a cara e as lágrimas começaram a cair sem que eu desse por isso.

Caminhei até ao jardim em frente ao prédio e sentei-me num banco. O pão ainda quente no colo, o rosól a arrefecer dentro do tupperware. Olhei para as mãos — tão gastas de tanto dar, de tanto fazer — e lembrei-me de tudo o que tinha sacrificado por ele.

O Miguel foi sempre um miúdo difícil. O pai dele morreu cedo — acidente de mota na estrada para Setúbal — e eu fiquei sozinha com um rapazinho de seis anos cheio de perguntas e nenhuma resposta. Trabalhei em dois empregos para lhe dar tudo: roupa boa, livros, explicações de matemática quando começou a ter dificuldades na escola.

Mas nunca consegui dar-lhe aquilo que ele realmente precisava: tempo. Estava sempre cansada demais ou preocupada demais. Quando chegava a casa à noite, ele já dormia muitas vezes. E quando acordava cedo para ir trabalhar, deixava-lhe bilhetes na mesa da cozinha: “Bom dia, filho! O pequeno-almoço está no frigorífico.”

Talvez tenha sido aí que comecei a perdê-lo.

Quando entrou na faculdade — Engenharia Informática no Técnico — fiquei tão orgulhosa! Mas também tão assustada. Ele começou a sair mais com os amigos, a trazer namoradas diferentes para casa. Eu tentava não me meter demasiado… mas era difícil.

Lembro-me da discussão no Natal passado:

— Mãe, tens de perceber que já não sou um miúdo! — gritou ele na sala cheia de luzes e cheiro a bacalhau.
— Eu sei, filho… mas custa-me ver-te assim tão distante…
— Não é por mal! Só quero espaço!

Espaço… essa palavra ficou-me cravada na memória como uma farpa.

Agora dou-lhe espaço demais? Ou será que nunca soube respeitar os limites dele?

O telefone vibrou outra vez. Era uma mensagem dele:

“Desculpa mãe. Hoje não posso mesmo. Estou cansado.”

Só isso. Nem um convite para subir amanhã, nem um “gosto de ti”.

Olhei para as sacolas no meu colo e senti-me ridícula. Uma mulher de sessenta anos sentada num banco de jardim com comida feita para alguém que não quer saber dela.

Ao meu lado sentou-se uma senhora idosa, cabelo branco apanhado num carrapito apertado.

— Está tudo bem consigo? — perguntou ela, olhando para mim com olhos bondosos.

Sorri sem vontade.

— Vim trazer comida ao meu filho… mas ele não me abriu a porta.

Ela assentiu com compreensão.

— Os filhos… às vezes esquecem-se do quanto precisamos deles também.

Ficámos ali em silêncio uns minutos. Depois ela levantou-se e foi embora. Eu fiquei sozinha outra vez.

Comecei a pensar em tudo o que tinha feito por ele: as noites sem dormir quando estava doente; os trabalhos extra para pagar-lhe as viagens de finalistas; as horas passadas à espera nas urgências quando partiu o braço a jogar futebol.

Será que alguma vez lhe disse “não”? Será que alguma vez pensei em mim?

O vento ficou mais forte e decidi voltar para casa. No caminho, passei pelo café onde costumávamos lanchar aos domingos depois da missa. Entrei e sentei-me numa mesa junto à janela.

A dona do café reconheceu-me:

— Dona Helena! Hoje está sozinha?

Assenti com um sorriso triste.

— O Miguel não pôde vir hoje…

Ela trouxe-me um café e uma fatia de bolo sem eu pedir. Fiquei ali a olhar para a rua, as pessoas a passarem apressadas, cada uma com as suas dores escondidas.

De repente lembrei-me da minha mãe — como eu própria me afastara dela quando era jovem. Sempre achei que ela era demasiado controladora, demasiado presente na minha vida. E agora percebia como é fácil repetir os erros dos nossos pais sem querer.

Quando cheguei a casa, sentei-me à mesa da cozinha vazia. Abri o tupperware do rosól e servi-me uma taça pequena. O cheiro encheu a casa de memórias felizes e tristes ao mesmo tempo.

Peguei no telefone e escrevi uma mensagem ao Miguel:

“Filho, só queria saber se estás bem. Se precisares de alguma coisa… sabes onde estou.”

Esperei um pouco pela resposta. Nada.

Fui até ao quarto dele — ainda igual desde que saiu: posters do Benfica na parede, livros escolares empilhados na secretária, o urso de peluche que lhe dei quando fez dez anos pousado na almofada.

Sentei-me na cama dele e chorei baixinho.

No dia seguinte acordei cedo como sempre. Fui trabalhar no supermercado do bairro — os colegas notaram logo que eu estava diferente.

— Está tudo bem consigo hoje? — perguntou a Ana, enquanto arrumávamos as prateleiras.
— Está… só estou cansada — menti.

À hora do almoço fui ao parque comer o pão que tinha feito para ele. Vi mães novas com bebés ao colo, crianças a correr atrás dos pombos… E pensei: será que algum dia os meus netos vão correr para mim?

Quando cheguei a casa ao fim do dia havia uma mensagem dele:

“Mãe… desculpa por ontem. Preciso mesmo de algum tempo sozinho agora. Não é por ti.”

Li aquela frase vezes sem conta. Não é por ti… Mas então por quem é? Por mim? Por ele? Por nós?

Fiquei ali sentada à mesa da cozinha até anoitecer, olhando para o telefone à espera de mais alguma coisa — um convite para jantar juntos, uma palavra de carinho… qualquer coisa.

Mas nada veio.

Agora escrevo estas palavras com as mãos trémulas e o coração apertado. Pergunto-me se falhei como mãe ou se simplesmente amei demais. Será possível amar tanto alguém ao ponto de sufocá-lo sem querer? E vocês… já sentiram este vazio dentro de casa quando os filhos deixam de precisar de nós?