“Porque não podes ser como ela?” – A minha luta contra as comparações com a ex-mulher do meu marido
— Porque não podes ser como ela? — A voz do Miguel ecoou pela cozinha, fria e cortante, enquanto eu tentava disfarçar as mãos trémulas ao servir-lhe o jantar. O cheiro do arroz de pato, que preparei com tanto cuidado, parecia agora enjoativo. Senti o estômago apertar-se, como se cada palavra dele fosse uma pedra a cair dentro de mim.
Olhei para ele, tentando encontrar nos seus olhos alguma ternura, algum vestígio do homem por quem me apaixonei. Mas só vi cansaço e impaciência. — Como quem? — perguntei, já sabendo a resposta, mas incapaz de evitar o confronto.
— Como a Teresa, claro. Ela nunca se esquecia de pôr salsa no arroz. E sabia sempre quando eu precisava de silêncio — respondeu, sem sequer levantar os olhos do prato.
A Teresa. A ex-mulher perfeita. A sombra que pairava sobre cada canto da nossa casa, mesmo depois de ter partido há mais de cinco anos. Nunca a conheci pessoalmente, mas conhecia cada detalhe dela através das histórias do Miguel, das fotos antigas que ele se recusava a guardar e das comparações constantes que me esmagavam.
No início, pensei que era insegurança minha. Que com o tempo ele iria perceber que eu era diferente, que tinha outras qualidades. Mas os meses passaram e as comparações tornaram-se rotina. Se eu ria alto demais, ele dizia: “A Teresa era mais discreta.” Se me esquecia de comprar o pão, ouvia: “A Teresa nunca se esquecia.” Até quando me vestia para sair, sentia o olhar dele a medir-me, como se procurasse nela aquilo que eu nunca seria.
A família dele também não ajudava. A sogra, Dona Amélia, fazia questão de me lembrar em cada almoço de domingo: — A Teresa fazia um bacalhau à Brás como ninguém. Tens de pedir-lhe a receita! — dizia, com um sorriso forçado, enquanto empurrava o meu prato para o lado.
Até os filhos do Miguel, o João e a Mariana, pareciam comparar-me à mãe deles. No início tentei conquistar-lhes o coração com paciência e carinho, mas cada tentativa era recebida com indiferença ou até hostilidade. Uma vez ouvi a Mariana dizer à avó: — Ela nunca vai ser como a mãe.
Comecei a duvidar de mim própria. Olhava-me ao espelho e via uma mulher cansada, com olheiras profundas e um sorriso forçado. Perguntava-me se algum dia seria suficiente para aquela família. Se algum dia deixaria de ser “a outra”.
As discussões com o Miguel tornaram-se mais frequentes. Ele dizia que eu era sensível demais, que fazia dramas por tudo e por nada. Eu gritava-lhe que precisava de sentir que era amada por quem sou, não por quem ele queria que eu fosse.
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre a Teresa — porque deixei cair um copo no chão e ele disse que ela nunca era desastrada — fechei-me na casa de banho e chorei até não ter mais lágrimas. Senti-me sozinha como nunca antes. Liguei à minha mãe, em lágrimas:
— Mãe, eu não aguento mais… Sinto que nunca vou ser suficiente para ele.
Ela ouviu-me em silêncio e depois disse: — Filha, ninguém merece viver à sombra de outra pessoa. Ou ele aprende a amar-te pelo que és, ou vais perder-te de ti própria.
As palavras dela ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. Comecei a reparar em pequenas coisas que antes ignorava: o modo como o Miguel nunca me elogiava, mas fazia questão de recordar as virtudes da Teresa; como os filhos dele evitavam conversar comigo; como até os amigos dele me tratavam como uma intrusa.
No trabalho também não estava melhor. Os meus colegas notavam o meu ar abatido e perguntavam se estava tudo bem em casa. Eu sorria e dizia que sim, mas por dentro sentia-me cada vez mais vazia.
Um dia, depois de mais uma discussão — desta vez porque esqueci-me do aniversário da sogra — decidi sair de casa para respirar. Fui até à praia da Costa da Caparica, sentei-me na areia fria e deixei o vento levar os meus pensamentos. Olhei para o mar e perguntei-me: “O que estou a fazer à minha vida? Será que algum dia vou ser feliz aqui?”
Quando voltei para casa já era tarde. O Miguel estava à minha espera na sala, com ar zangado:
— Onde estiveste? Nem sequer avisaste! — gritou.
— Precisei de estar sozinha — respondi, tentando manter a calma.
— Sozinha? Ou foste falar com alguém? — perguntou ele, com aquela desconfiança habitual.
— Fui falar comigo mesma! Porque já não sei quem sou nesta casa! — explodi finalmente.
Ele ficou em silêncio por um momento e depois disse: — Se não gostas, ninguém te obriga a ficar.
Essas palavras foram como um murro no estômago. Subi para o quarto e comecei a fazer as malas. Não sabia para onde ia, mas sabia que não podia continuar ali.
Na manhã seguinte, quando os filhos dele acordaram e viram-me com as malas na mão, a Mariana perguntou:
— Vais embora?
Olhei para ela e vi nos seus olhos uma mistura de alívio e tristeza. — Vou sim. Mas não é culpa tua nem do teu irmão. Só preciso encontrar um lugar onde possa ser eu mesma.
Saí de casa sem olhar para trás. Fui para casa da minha mãe em Almada e passei os primeiros dias em silêncio, a tentar perceber onde tinha falhado. Mas aos poucos comecei a sentir-me mais leve. Voltei a fazer coisas de que gostava: caminhar no parque da cidade, ler romances na esplanada do café da Dona Graça, conversar com amigas antigas.
O Miguel ligou-me algumas vezes nas primeiras semanas. Primeiro zangado, depois triste. Dizia que sentia falta da rotina, do meu arroz de pato (mesmo sem salsa), da minha presença em casa. Mas nunca pediu desculpa pelas comparações nem reconheceu o quanto me magoou.
Aos poucos percebi que não era eu que estava errada. Que ninguém merece viver à sombra do passado dos outros. Que mereço ser amada pelo que sou — com defeitos e virtudes — e não por aquilo que alguém foi antes de mim.
Hoje olho para trás com tristeza pelo tempo perdido, mas também com orgulho pela coragem de ter saído daquela prisão invisível. Recomecei a minha vida do zero: arranjei um novo emprego numa livraria no centro de Lisboa, fiz novas amizades e até comecei a sair com alguém diferente — o Rui, um homem simples e gentil que me faz sentir vista pela primeira vez em muitos anos.
Às vezes ainda me pergunto se poderia ter feito algo diferente para salvar aquele casamento. Mas depois lembro-me das palavras da minha mãe: “Ninguém merece viver à sombra de outra pessoa.” E penso: quantas mulheres (ou homens) vivem assim todos os dias? Quantos de nós aceitamos menos do que merecemos só porque temos medo de ficar sozinhos?
Será que é possível reconstruir-nos depois de tanto tempo a viver no escuro? E vocês… já sentiram que viveram à sombra do passado de alguém?