“Porque não és como a Mariana?” – Uma noite portuguesa cheia de comparações
“Porquê que não és como a Mariana?”
As palavras dele ecoaram pela cozinha como um trovão. Eu estava a cortar cebolas para a sopa, já com os olhos a arder, quando o António entrou, largou as chaves em cima da mesa e atirou esta pergunta como se fosse uma coisa banal. Senti o peito apertar-se, as mãos começaram a tremer e, por um segundo, pensei em largar tudo e sair dali. Mas fiquei. Fiquei porque era a minha casa, porque era o meu casamento, porque eu ainda acreditava que havia alguma coisa para salvar.
“Desculpa?” perguntei, tentando manter a voz firme, mas já sentia as lágrimas a quererem saltar.
Ele suspirou, impaciente. “A Mariana faz sempre aqueles jantares todos bonitos para o Rui. Ele chega a casa e tem sempre comida quente, sobremesa feita… Tu nem gostas de cozinhar. Chego a casa e é sempre sopa ou massa.”
Olhei para ele, incrédula. “Estás mesmo a comparar-me à Mariana? Queres ir viver com ela?”
O António revirou os olhos. “Não é isso. Só acho que podias esforçar-te mais. Antes de casarmos eras diferente.”
Antes de casarmos… Quantas vezes já ouvi esta frase? Antes de casarmos eu era outra pessoa, sim. Trabalhava menos horas, não tinha dois filhos para criar, não tinha uma mãe doente para visitar todos os dias depois do trabalho. Antes de casarmos eu ainda acreditava que o amor bastava.
“Sabes quantas horas trabalhei hoje?” perguntei, tentando controlar a raiva. “Sabes que fui buscar o Tiago à escola porque estava com febre? Que fui ao hospital ver a minha mãe? Que ainda tive de passar no supermercado porque tu te esqueceste de comprar pão?”
Ele encolheu os ombros. “Toda a gente tem problemas.”
Senti-me invisível. Como se tudo o que eu fazia não valesse nada. Como se o meu esforço fosse sempre insuficiente.
O Tiago entrou na cozinha nesse momento, com o pijama torto e os olhos ainda meio inchados da febre.
“Mãe, posso ver desenhos animados?”
Ajoelhei-me ao lado dele e dei-lhe um beijo na testa. “Podes, mas só um bocadinho.”
Quando me levantei, o António já tinha saído da cozinha. Fiquei ali sozinha, com o cheiro da cebola e da sopa a ferver no fogão. Senti-me tão pequena.
Lembrei-me da Mariana. Conhecemo-nos há anos, desde os tempos da faculdade. Sempre foi aquela mulher perfeita: cabelo impecável, unhas feitas, casa arrumada, filhos bem vestidos. Mas também sabia dos segredos dela – das discussões com o Rui, das noites em que chorava sozinha porque ele chegava tarde do trabalho e nem lhe perguntava como estava. Sabia que ela cozinhava porque era a única coisa que conseguia controlar na vida dela.
Mas isso o António não sabia. Para ele, só via os jantares bonitos e as fotos no Instagram.
Naquela noite, depois de deitar o Tiago e a Matilde, sentei-me no sofá com uma manta e tentei ler um livro. Mas não conseguia concentrar-me. A frase dele martelava-me na cabeça: “Porquê que não és como a Mariana?”
Lembrei-me de quando éramos namorados. O António era carinhoso, fazia surpresas, escrevia bilhetes amorosos. Agora parecia que só via o que faltava em mim.
No dia seguinte acordei cedo para preparar os lanches das crianças. O António saiu sem dizer nada. Senti um nó na garganta mas continuei com a rotina: acordar os miúdos, vestir-lhes a roupa, discutir porque a Matilde não queria pôr o casaco.
No trabalho ninguém sabia do que se passava em casa. Sorria para toda a gente, respondia aos emails, fingia que estava tudo bem. Mas por dentro sentia-me cada vez mais sozinha.
À hora de almoço recebi uma mensagem da Mariana: “Vamos tomar café?”
Aceitei. Precisava de desabafar com alguém.
Encontrámo-nos numa pastelaria perto do trabalho. Ela estava impecável como sempre, mas assim que me viu percebeu logo que algo não estava bem.
“O que se passa?” perguntou.
Contei-lhe tudo. As comparações, as discussões, o cansaço.
Ela olhou para mim com tristeza nos olhos. “Sabes… O Rui também me compara contigo às vezes. Diz que tu és mais descontraída, que não te preocupas tanto com tudo.”
Ficámos as duas em silêncio durante uns segundos.
“Sabes o que acho?” disse ela finalmente. “Acho que eles nunca estão satisfeitos porque também não estão felizes com eles próprios.”
Sorri pela primeira vez em dias.
Quando cheguei a casa nessa noite, o António estava sentado à mesa com o computador aberto.
“Podemos falar?” perguntei.
Ele olhou para mim sem expressão.
“Eu não sou a Mariana,” disse-lhe calmamente. “E tu também não és o Rui. Se queres alguém diferente ao teu lado, diz-me agora.”
Ele ficou calado durante uns segundos longos demais.
“Eu só queria que as coisas fossem como antes,” murmurou finalmente.
Sentei-me à frente dele.
“Antes era mais fácil porque tínhamos menos responsabilidades. Agora temos uma família, problemas reais… Não podemos viver de aparências.”
Ele baixou os olhos.
“Desculpa,” disse finalmente. “Às vezes sinto-me frustrado e descarrego em ti.”
Apercebi-me nesse momento de quanto tempo tinha passado desde a última vez que tínhamos tido uma conversa honesta.
Nessa noite dormimos abraçados pela primeira vez em meses.
Os dias seguintes não foram perfeitos – continuámos a discutir por coisas pequenas: quem leva as crianças à escola, quem lava a loiça… Mas comecei a sentir-me menos sozinha. Comecei a perceber que não tinha de ser perfeita para ser amada.
Hoje olho para trás e vejo quanto tempo perdi a tentar ser alguém que não sou – para agradar aos outros, para corresponder às expectativas de uma sociedade que exige tanto das mulheres portuguesas: boas mães, boas esposas, boas profissionais…
Mas quem cuida de nós?
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres estarão agora mesmo sentadas numa cozinha fria, a perguntar-se porque não são como as outras? Quantas estarão a comparar-se sem saberem que do outro lado também há dor?
E vocês? Já sentiram isto? Será que alguma vez vamos conseguir ser felizes sendo apenas nós mesmas?