Porque ela e não eu? Um drama familiar na família Silva
— Não é justo, mãe! — gritei, com a voz embargada, enquanto as lágrimas ameaçavam cair. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se ao ar pesado da cozinha, onde a minha mãe, Dona Helena, olhava para mim com aquele olhar cansado, mas firme. Mariana, a minha irmã mais nova, estava sentada à mesa, os olhos baixos, mexendo distraidamente no telemóvel.
— Filha, não é assim tão simples — respondeu a minha mãe, tentando manter a calma. — A Mariana precisava de ajuda agora. Tu tens o teu emprego, tens o teu cantinho…
— O meu cantinho? Mãe, eu moro num T1 alugado há sete anos! A Mariana acabou de comprar um apartamento novo em Matosinhos porque tu lhe deste o dinheiro! — A minha voz ecoou pela casa, e naquele momento percebi que não era só raiva; era dor. Uma dor funda, antiga, que eu nunca tinha sentido tão forte.
Desde pequenas, sempre fomos diferentes. Eu, Inês Silva, a filha mais velha, sempre a tentar agradar, sempre a estudar para ser a melhor. Mariana era a rebelde, a que faltava às aulas, a que chegava tarde a casa e fazia os meus pais perderem noites de sono. Mas no fim do dia, era sempre ela quem recebia o abraço mais apertado da mãe. Eu dizia a mim mesma que era impressão minha, que o amor de mãe não se mede assim. Mas agora… agora era impossível ignorar.
Lembro-me de quando éramos crianças e eu ficava horas a fazer os trabalhos de casa sozinha enquanto Mariana chorava porque não queria estudar. A mãe sentava-se ao lado dela, explicava tudo com paciência. Eu? Eu aprendia sozinha. E quando tirava boas notas, ouvia: “É tua obrigação.” Quando Mariana passava à rasca, havia festa em casa.
Naquela manhã fatídica, depois da discussão na cozinha, saí de casa da minha mãe sem olhar para trás. O vento frio do Porto cortava-me o rosto enquanto caminhava sem destino. Senti-me pequena, invisível. Porquê ela e não eu? O que fiz de errado?
Os dias seguintes foram um tormento. Não atendia as chamadas da minha mãe nem respondia às mensagens da Mariana. No trabalho, mal conseguia concentrar-me. Os colegas perguntavam se estava tudo bem e eu sorria amarelo: “Só um pouco cansada.” Mas por dentro sentia-me vazia.
Uma noite, o meu pai ligou-me. — Inês, precisamos de conversar. Não podes continuar assim.
Fui até à casa dos meus pais com o coração apertado. O meu pai esperava-me na sala com um ar grave.
— Filha, sei que estás magoada. Mas cada filho é diferente. A tua irmã sempre teve mais dificuldades…
— Pai, não é só isso! É sempre ela! Sempre ela em primeiro lugar! Eu também preciso de sentir que sou importante! — As lágrimas caíram finalmente.
O meu pai suspirou e abraçou-me. — Às vezes os pais erram sem querer. Mas tu és importante para nós.
Saí dali ainda mais confusa. Se sou importante, porque nunca me sinto assim?
No fim de semana seguinte, Mariana apareceu à porta do meu apartamento. Trazia um bolo de chocolate nas mãos e um olhar triste.
— Posso entrar?
Assenti em silêncio. Sentámo-nos no sofá e durante minutos ninguém disse nada.
— Inês… desculpa. Eu não pedi à mãe para me dar dinheiro. Ela ofereceu porque achou que eu precisava mais…
— E eu não preciso? — interrompi, sentindo a raiva voltar.
— Eu sei que parece injusto… Mas tu sempre foste forte. Sempre deste conta do recado sozinha…
— E isso é justo? Ser forte significa ser esquecida?
Mariana começou a chorar baixinho.
— Eu nunca quis que fosse assim entre nós…
Ficámos ali sentadas, as duas a chorar em silêncio. Pela primeira vez percebi que talvez ela também carregasse um peso: o de ser sempre vista como a frágil, a problemática.
Os meses passaram e as feridas foram sarando devagarinho. Mas nada voltou a ser igual. A relação com a minha mãe ficou tensa; as conversas eram superficiais e evitávamos falar do assunto.
No Natal desse ano, estávamos todos juntos à mesa quando a minha mãe levantou-se e pediu silêncio.
— Sei que este ano foi difícil para todos nós. Sei que magoei a Inês sem querer… — A voz dela tremia. — Quero pedir-te desculpa, filha. Nunca foi minha intenção fazer-te sentir menos amada.
Olhei para ela e vi nos olhos dela uma sinceridade que me desarmou. Abracei-a e chorei como há muito tempo não chorava.
Mas ainda hoje me pergunto: será que algum dia vou conseguir esquecer esta sensação de injustiça? Ou será que há feridas na família que nunca cicatrizam completamente?
E vocês? Já sentiram que foram deixados para trás por quem mais amam?