“Porque é que me importa a idade que aparento?” – O meu desabafo sobre padrões de beleza e envelhecimento

— Maria, já viste estas rugas? — perguntou a minha irmã, Ana, enquanto me olhava com uma mistura de preocupação e crítica. Estávamos sentadas na sala da casa da nossa mãe, em Benfica, rodeadas de fotografias antigas e do cheiro a café acabado de fazer. Eu tinha acabado de chegar do trabalho, cansada, com as marcas do dia estampadas no rosto.

— E então? — respondi, tentando esconder o desconforto. — São só rugas, Ana. Fazem parte da vida.

Ela suspirou, abanando a cabeça. — Tu não percebes. Hoje em dia, ninguém quer parecer velha. Olha para a nossa prima Teresa: fez um peeling, botox… Está ótima! E tu… tu pareces cansada.

Senti o sangue ferver-me nas veias. Desde pequena que ouvia comentários sobre o corpo, o cabelo, a pele. Cresci numa família onde as mulheres se arranjavam para os outros, onde a beleza era quase uma obrigação. Mas naquele momento, depois de um dia inteiro a aturar alunos adolescentes e colegas que só falam de dietas e cremes milagrosos, não consegui calar-me.

— Sabes o que é cansativo? — comecei, com a voz a tremer. — É esta pressão constante para parecermos sempre jovens. Como se envelhecer fosse uma vergonha! Como se as nossas rugas não fossem medalhas de tudo o que já vivemos!

A minha mãe entrou na sala nesse instante, com uma bandeja de chá e bolachas. Olhou para nós e percebeu logo o ambiente tenso.

— O que se passa aqui? — perguntou.

Ana encolheu os ombros. — A Maria acha que não precisa de cuidar da aparência.

— Não foi isso que eu disse! — interrompi, sentindo as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos. — Só estou farta de sentir que nunca sou suficiente. Que nunca somos suficientes!

O silêncio caiu sobre nós como um manto pesado. A minha mãe pousou a bandeja e sentou-se ao meu lado.

— Filha, eu entendo-te. Mas sabes como é a nossa sociedade… As pessoas reparam em tudo. Se não te cuidas, falam. Se te cuidas demais, também falam.

— Então porquê tentar agradar-lhes? — perguntei, quase num sussurro.

A Ana revirou os olhos e pegou no telemóvel. — Olha para isto — disse ela, mostrando-me uma publicação no Instagram de uma influencer portuguesa da nossa idade, sem uma única ruga à vista. — Ela tem quase cinquenta anos e parece ter trinta!

— E achas mesmo que aquilo é real? — perguntei-lhe. — Quantos filtros, quantas cirurgias? E mesmo que fosse… porque é que temos todas de ser iguais?

A discussão prolongou-se durante horas. A Ana acusou-me de me ter acomodado, de não querer saber de mim própria. Eu acusei-a de ser superficial e de julgar as pessoas pela aparência. A minha mãe tentou apaziguar-nos, mas acabou por admitir que também sentia vergonha das suas próprias rugas.

Nessa noite, não consegui dormir. Fiquei a olhar para o teto do meu quarto, a pensar em todas as vezes que me senti feia ou inadequada. Lembrei-me das festas de família em que as tias comentavam o peso das primas, das idas ao cabeleireiro onde as conversas giravam sempre à volta da juventude perdida.

No dia seguinte, decidi escrever um texto no Facebook. Não pensei muito antes de publicar:

“Porque é que me importa tanto a idade que aparento? Porque é que nos ensinam desde pequenas que envelhecer é perder valor? As minhas rugas contam histórias: noites sem dormir com os meus filhos doentes, risos partilhados com amigas no café da esquina, preocupações com contas por pagar… Não quero esconder quem sou nem o que vivi.”

O post tornou-se viral entre os meus amigos e familiares. Recebi dezenas de mensagens: algumas de apoio, outras cheias de críticas veladas.

A minha prima Teresa comentou: “Cada um faz o que quer com o seu corpo! Não julguem quem quer sentir-se melhor.”

Uma colega do liceu escreveu: “Obrigada por dizeres isto em voz alta. Também estou cansada desta pressão.”

Mas houve também quem me acusasse de estar a promover o desleixo ou de invejar quem se cuida mais.

Os dias seguintes foram um turbilhão. No trabalho, algumas colegas começaram a olhar-me de lado. Outras vieram falar comigo à socapa:

— Maria, adorei o teu texto… Mas não achas perigoso expor-te assim?

— Perigoso porquê? — perguntei.

— Porque as pessoas são más… E porque ninguém gosta de ver alguém a desafiar as regras.

Comecei a reparar em pequenos gestos: sorrisos forçados, conversas interrompidas quando eu entrava na sala dos professores. Até os alunos pareciam mais atentos ao meu aspeto.

Em casa, o ambiente continuava tenso. A Ana deixou de me ligar durante dias. A minha mãe tentava manter-se neutra, mas percebia-se que estava desconfortável com toda a exposição pública da nossa família.

Uma noite, o meu filho mais velho entrou no meu quarto enquanto eu desmaquilhava o rosto.

— Mãe… porque é que estás triste?

Sorri-lhe e puxei-o para junto de mim.

— Não estou triste, filho… Só estou cansada.

Ele olhou-me nos olhos e disse:

— Eu gosto das tuas rugas. São como mapas das tuas aventuras.

Chorei baixinho depois que ele saiu do quarto.

No fim-de-semana seguinte, houve almoço de família em casa da avó. O ambiente estava estranho; todos evitavam falar do assunto viral nas redes sociais. Até que o meu tio Manuel decidiu quebrar o gelo:

— Então, Maria… já és famosa! Vi o teu texto partilhado até no grupo do bairro!

Riram-se todos menos eu e a Ana.

Ela levantou-se da mesa e saiu para o quintal. Fui atrás dela.

— Ana… desculpa se te magoei com o que disse.

Ela olhou-me nos olhos pela primeira vez em dias.

— Eu só queria ajudar-te… Não quero ver-te desistir de ti própria.

Abracei-a.

— Eu não desisti de mim. Só quero aprender a gostar de mim como sou agora… Não como era há vinte anos.

Ficámos ali abraçadas durante algum tempo, até ouvirmos a avó chamar-nos para sobremesa.

Os dias passaram e fui aprendendo a lidar com os olhares e os comentários. Continuei a cuidar de mim à minha maneira: caminhadas ao fim da tarde pelo Jardim da Estrela, chá quente antes de dormir, livros em vez de cremes caros.

Mas nunca mais voltei a ser exatamente igual. A discussão com a Ana abriu feridas antigas; o post viral mostrou-me quantas mulheres vivem presas ao medo de envelhecer.

Hoje olho-me ao espelho e vejo mais do que rugas: vejo coragem para desafiar padrões injustos e amor-próprio suficiente para aceitar quem sou.

E pergunto-me: quantas mulheres continuam caladas por medo do julgamento? Quantas histórias ficam por contar porque temos vergonha das marcas do tempo?

E vocês? Já se sentiram pressionadas a esconder quem realmente são?