Perguntei à Minha Amiga de 70 Anos Como Ela Aguenta a Solidão: Uma Vida Sem Marido e Filhos Distantes
— Não precisas de me trazer flores, Marta. O que eu preciso mesmo é de alguém que me ouça — disse Amanda, com aquele sorriso cansado enquanto ajeitava a manta sobre as pernas. O relógio da sala marcava quase seis da tarde, e o cheiro do chá de cidreira misturava-se ao perfume antigo do seu apartamento em Benfica. Eu sentia um nó na garganta, mas não sabia se era pela compaixão ou pela culpa de só agora, depois de tantos anos, querer saber mais da vida dela.
— Mas não entendo, Amanda… Como consegues? Sozinha aqui, sem o António, sem os teus filhos por perto… — arrisquei, sabendo que talvez estivesse a invadir um território sagrado.
Ela pousou a chávena devagar, olhou-me nos olhos e suspirou. — Achas que foi escolha minha? Ou achas que foi castigo? — A voz dela tremia, mas havia uma força ali, uma raiva contida. — Sabes, Marta, há coisas que não se dizem nem aos melhores amigos. Mas hoje… hoje estou cansada de guardar tudo cá dentro.
O silêncio caiu pesado. Oiço o trânsito lá fora, os risos das crianças no parque. Aqui dentro, só nós duas e as memórias dela.
— Quando o António morreu — começou ela, com os olhos perdidos na janela — senti-me a afundar num poço sem fundo. Ele era tudo para mim. Não era perfeito, longe disso. Discutíamos por tudo: dinheiro, os miúdos, até pelo canal da televisão. Mas era o meu companheiro. Quando partiu, fiquei com dois filhos adolescentes e um vazio que nem o tempo conseguiu preencher.
Lembro-me de ver Amanda no trabalho, sempre impecável, sempre pronta a ajudar. Nunca imaginei que por trás daquela postura firme havia tanta dor.
— Os meus filhos… — continuou ela — cresceram a ver-me como a mãe dura, exigente. Talvez tenha sido. Talvez tenha cobrado demais deles porque tinha medo de os perder também. O Pedro foi para o Porto estudar e nunca mais voltou. A Ana casou cedo demais, fugiu para longe desta casa cheia de silêncios. Agora ligam-me no Natal e nos anos. Mandam mensagens rápidas: “Está tudo bem, mãe?” Mas nunca perguntam se eu estou mesmo bem.
Senti um aperto no peito. Quantas vezes eu própria não liguei à minha mãe só por obrigação?
— E tu? — perguntei baixinho. — Nunca pensaste em refazer a tua vida?
Amanda sorriu triste. — Aos 50 já ninguém quer saber de uma mulher viúva e com rugas. Tive um ou outro pretendente… mas nenhum ficou. Acho que me tornei difícil de amar. Ou talvez tenha fechado o coração para não sofrer mais.
O telefone tocou na sala ao lado. Ela ignorou.
— Sabes o que custa mais? — perguntou ela, com a voz embargada. — Não é estar sozinha à noite ou comer sopa fria porque não apetece cozinhar só para mim. O que custa é sentir que falhei como mãe. Que os meus filhos fogem de mim porque lhes dei demasiado do que achava ser amor e pouco do que eles realmente precisavam.
Fiquei sem palavras. Quis abraçá-la, mas ela afastou-se levemente.
— Não te preocupes comigo, Marta. Aprendi a viver assim. Tenho os meus livros, as minhas plantas… E agora tenho-te a ti para conversar de vez em quando.
Ouvimos passos no corredor do prédio. Por um momento, pensei que alguém viesse visitá-la. Mas era só o vizinho do terceiro andar.
— Às vezes penso: se pudesse voltar atrás… teria sido menos rígida? Teria dito mais vezes “amo-te” em vez de “faz os trabalhos de casa”? Mas depois lembro-me: fiz o melhor que sabia com o que tinha na altura.
A noite caiu devagar sobre Lisboa. As luzes dos candeeiros desenhavam sombras nas paredes da sala.
— Sabes o que me dói mais? — murmurou Amanda — É ver as outras mães rodeadas de netos nos jardins e saber que nunca vou ter isso. Que os meus domingos são passados a ver televisão ou a falar com as minhas orquídeas.
O meu coração partiu-se um pouco mais por ela.
— Mas não te culpes tanto… — tentei consolar.
Ela riu-se baixinho. — Todos temos culpas, Marta. Uns por fazerem demais, outros por fazerem de menos. A vida é feita desses equívocos.
Ficámos em silêncio outra vez. Eu pensava na minha própria família, nas discussões com o meu irmão, nas vezes em que ignorei as chamadas da minha mãe porque estava ocupada demais.
— Sabes o que me mantém viva? — perguntou Amanda de repente. — A esperança tola de que um dia eles batam à porta sem avisar. Que entrem aqui e digam: “Mãe, viemos passar o domingo contigo.” Sei que é pouco provável… mas é essa esperança que me faz levantar todos os dias.
Olhei para ela e vi não só uma mulher marcada pela solidão, mas também alguém incrivelmente forte.
— E tu? — perguntou-me ela subitamente — Tens medo de acabar como eu?
A pergunta ficou a ecoar na sala escura.
— Acho que todos temos esse medo — respondi honestamente. — Mas nunca pensei nisso até hoje.
Amanda sorriu com ternura e pegou na minha mão.
— Então aprende com os meus erros, Marta. Ama sem medo, diz o que sentes enquanto podes dizer. Porque um dia podes acordar e perceber que já não tens tempo para mudar nada.
Saí do apartamento dela naquela noite com o coração pesado e mil perguntas na cabeça. Quantos de nós não estamos a repetir os mesmos erros sem perceber? Quantas Amandas existem por aí à espera de um telefonema ou de uma visita inesperada?
Agora pergunto-me: será possível quebrar este ciclo de solidão antes que seja tarde demais? E vocês… já disseram hoje a alguém importante o quanto gostam dela?