Perdi a saúde, mas não perdi vocês – A história de uma família portuguesa sobre esperança e união
— Não, mãe! Não quero mais ouvir ninguém a dizer que vai ficar tudo bem! — gritei, sentindo as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto, enquanto olhava para o tecto branco do quarto do hospital de Santa Maria. O cheiro a desinfetante misturava-se com o medo e a raiva que me consumiam por dentro. Oiço o choro abafado da minha mãe, Maria do Carmo, sentada ao meu lado, a apertar as mãos como se rezasse. O meu pai, António, está encostado à parede, calado, com os olhos vermelhos. O meu irmão mais novo, Miguel, não diz nada — nunca sabe o que dizer nestas alturas.
A vida mudou num segundo. Era uma sexta-feira de março, chovia torrencialmente em Lisboa. Saí do trabalho mais cedo para surpreender a minha namorada, Inês, com um jantar. Não vi o carro a atravessar o sinal vermelho na Avenida da Liberdade. Lembro-me do barulho ensurdecedor, do vidro a estilhaçar-se, do cheiro a gasolina e do grito da Inês. Depois, só silêncio.
Acordei dois dias depois, já no hospital. As primeiras palavras do médico ecoam-me ainda hoje na cabeça: “João, houve uma lesão grave na coluna. Não vai voltar a andar.” Senti-me a afundar num poço sem fundo. Tinha 29 anos e todos os meus sonhos pareciam ter morrido ali.
Os dias seguintes foram um borrão de visitas, lágrimas e perguntas sem resposta. A Inês vinha todos os dias, mas eu via nos olhos dela o medo e a dúvida. Os meus pais tentavam ser fortes, mas eu sabia que choravam quando saíam do quarto. O Miguel evitava olhar para mim — talvez porque eu era o irmão mais velho, o exemplo, e agora estava ali, preso a uma cama.
— João, tens de ser forte — dizia-me o meu pai numa noite em que ficámos sozinhos. — A vida não acaba aqui.
— Para mim acabou — respondi-lhe seco. — Não quero ser um peso para vocês.
Ele aproximou-se da cama e agarrou-me no braço com força.
— Tu nunca foste nem serás um peso. Somos família. Vamos passar por isto juntos.
Mas eu não acreditava nele. Sentia-me inútil. Os amigos começaram a aparecer menos. O trabalho ligou uma vez para saber como estava. A Inês começou a chegar mais tarde e a sair mais cedo. Um dia, entrou no quarto com os olhos inchados.
— João… precisamos de falar.
O coração caiu-me ao chão.
— Eu amo-te, mas não sei se consigo lidar com isto… — disse ela, com a voz trémula. — Desculpa.
Não chorei. Não gritei. Só fiquei ali, vazio, enquanto ela saía pela última vez.
Depois disso afastei toda a gente. Recusei fisioterapia, recusei visitas. Só queria dormir e esquecer que existia. A minha mãe insistia todos os dias:
— Joãozinho, por favor… faz isto por nós.
Mas eu não queria ouvir.
Foi o Miguel quem me abalou finalmente. Um dia entrou no quarto sem avisar e atirou-me uma bola de futebol para cima da cama.
— Lembras-te quando me ensinaste a jogar? — perguntou ele, com os olhos cheios de lágrimas. — Agora és tu que precisas de mim.
Fiquei sem palavras. Pela primeira vez em meses senti alguma coisa além de dor: vergonha por ter desistido deles.
Comecei devagarinho a aceitar ajuda. A fisioterapeuta, Dona Teresa, era dura mas justa.
— Se queres voltar a viver, tens de lutar — dizia ela enquanto me ajudava a sentar na cadeira de rodas pela primeira vez.
Os primeiros dias em casa foram um pesadelo. Tudo parecia impossível: tomar banho sozinho, subir para a cama, até abrir uma lata de atum era uma batalha. A minha mãe adaptou a casa toda: rampas na entrada, barras na casa de banho, até uma campainha ao lado da cama para chamar por ela à noite.
O meu pai começou a levar-me ao café do bairro todos os domingos de manhã. No início sentia todos os olhares em cima de mim: vizinhos que cochichavam, crianças que apontavam. Mas aos poucos fui-me habituando à nova rotina.
O Miguel nunca me largou. Levava-me ao estádio da Luz para ver o Benfica jogar — mesmo que eu não tivesse vontade nenhuma. Um dia levou-me à praia da Caparica e empurrou-me pela areia até à beira-mar.
— Se não podes correr atrás das ondas, pelo menos podes senti-las nos pés — disse ele, sorrindo.
Aos poucos comecei a perceber que ainda havia vida para além da dor. Inscrevi-me num curso online de programação — sempre gostei de computadores — e comecei a trabalhar remotamente para uma empresa do Porto. Fiz novos amigos virtuais que nunca me viram antes do acidente e não me tratavam como um coitadinho.
A minha mãe voltou a sorrir quando me viu rir pela primeira vez em meses. O meu pai começou a falar dos seus próprios medos e fragilidades — algo que nunca tinha feito antes. O Miguel apresentou-me à namorada nova e pediu-me conselhos sobre o primeiro jantar com os sogros.
Ainda há dias maus — muitos dias maus. Às vezes acordo revoltado com tudo o que perdi: correr no parque Eduardo VII, dançar nas festas populares de Lisboa, subir ao castelo de São Jorge com os amigos… Mas depois olho para eles: para os meus pais que nunca desistiram de mim; para o Miguel que se tornou o meu melhor amigo; para mim próprio no espelho e vejo alguém diferente — não menos inteiro, apenas diferente.
Hoje sei que perdi muita coisa naquele acidente: perdi a saúde, perdi amores e perdi sonhos antigos. Mas ganhei outras coisas: ganhei tempo com quem amo; ganhei força para enfrentar o impossível; ganhei uma nova forma de olhar para o mundo.
Às vezes pergunto-me: quantos de nós só aprendemos a valorizar quem temos quando achamos que já perdemos tudo? E vocês? O que fariam se tivessem de recomeçar do zero?