Pedido Inesperado: Quando a Família Testa os Limites
— Outra vez, mãe? — pensei, sentindo o coração a bater mais rápido enquanto lia as palavras escritas à mão, com a letra trémula que tão bem conhecia. O envelope estava pousado sobre a mesa da cozinha, aberto há minutos, mas o conteúdo parecia ecoar há anos na minha cabeça. “Filha, preciso de ti. Desta vez é mesmo urgente. Podes ajudar-me com algum dinheiro?”
Sentei-me, as pernas a tremer. Rui entrou na cozinha, ainda com o casaco vestido, e percebeu logo o ambiente pesado.
— O que foi agora, Inês?
Levantei os olhos, tentando conter as lágrimas.
— É a minha mãe. Pediu-me dinheiro outra vez. Não sei o que fazer, Rui. Não sei mesmo.
Ele suspirou, largando as chaves na bancada.
— Já falámos sobre isto. Não podemos continuar a resolver-lhe a vida sempre que ela se mete em sarilhos. Temos as nossas contas, a Leonor precisa de sapatos novos, e tu sabes como está o meu trabalho…
As palavras dele eram duras, mas verdadeiras. O salário de Rui como técnico de informática não era grande coisa e eu, professora contratada, vivia na corda bamba dos horários e dos recibos verdes. Mas era a minha mãe. A mulher que me criou sozinha depois do meu pai nos ter deixado quando eu tinha seis anos. A mulher que me ensinou a ser forte — ou pelo menos foi isso que sempre quis acreditar.
— Não é assim tão simples — murmurei. — Ela está sozinha, Rui. E se desta vez for mesmo grave?
Ele aproximou-se e pousou a mão no meu ombro.
— Inês, tu sabes que eu gosto da tua mãe. Mas ela já te magoou tanto… Lembras-te do Natal passado? E do empréstimo do ano anterior? Nunca mais vimos esse dinheiro.
A verdade é que me lembrava de tudo. Lembrava-me das discussões intermináveis, das promessas quebradas, das noites em claro a pensar se teria feito alguma coisa errada para merecer aquela distância fria entre nós. Lembrava-me do olhar dela quando lhe disse que ia casar com Rui — uma mistura de orgulho e ciúme mal disfarçado. Lembrava-me de como ela me fazia sentir culpada sempre que eu tentava pôr limites.
Mas também me lembrava dos domingos de chuva em que ela me fazia panquecas e me deixava dormir na cama dela quando tinha pesadelos. Lembrava-me das vezes em que ela trabalhou horas extra para eu poder ir à visita de estudo ao Oceanário.
— Vou ligar-lhe — disse finalmente, limpando uma lágrima teimosa.
Rui abanou a cabeça, mas não insistiu. Peguei no telemóvel com as mãos trémulas e marquei o número dela.
— Inês? — atendeu ao segundo toque, a voz cansada mas esperançosa.
— Mãe… Recebi a tua carta. O que se passa?
Houve um silêncio do outro lado. Ouvi-a inspirar fundo.
— Filha… Eu sei que já te pedi muito. Mas desta vez é diferente. Estou mesmo aflita. O senhorio quer aumentar a renda e eu não tenho como pagar. Se não conseguir arranjar dinheiro até ao fim do mês… vou ter de sair daqui.
Fechei os olhos, sentindo o peso da responsabilidade a esmagar-me o peito.
— Mãe, tu nunca me contas tudo. Há sempre mais qualquer coisa… Porque é que não procuras ajuda? Porque é que não falas com a Segurança Social?
Ela suspirou.
— Já tentei, filha. Mas sabes como são as coisas neste país… Papéis para aqui, papéis para ali, ninguém resolve nada. E eu já não tenho forças para lutar.
A raiva misturou-se com pena. Queria gritar-lhe que não podia continuar assim, mas também queria abraçá-la e prometer-lhe que tudo ia ficar bem.
— Vou ver o que posso fazer — disse apenas, antes de desligar.
Passei o resto da noite em silêncio, a olhar para o teto do quarto enquanto Rui ressonava baixinho ao meu lado. A cabeça cheia de contas: renda, supermercado, escola da Leonor… E agora isto.
No dia seguinte, fui trabalhar como um autómato. Os alunos do 9º ano estavam especialmente irrequietos e mal consegui concentrar-me nas correções dos testes. No intervalo, sentei-me na sala dos professores ao lado da Ana Margarida.
— Estás com um ar péssimo — comentou ela, sem rodeios.
Sorri sem vontade.
— É a minha mãe outra vez…
Ela abanou a cabeça.
— A minha também é assim. Nunca nos largam o osso… Mas olha, temos de aprender a dizer não. Senão nunca mais vivemos para nós.
Palavras sábias, pensei. Mas como se diz “não” à própria mãe?
Quando cheguei a casa nesse dia, Rui estava sentado à mesa com uma folha de papel cheia de números rabiscados.
— Estive a fazer contas — disse ele sem rodeios. — Se lhe dermos o dinheiro este mês, vamos ter de apertar ainda mais o cinto. E não sei se aguentamos outro imprevisto.
Sentei-me ao lado dele e olhei para os números como se fossem um enigma impossível de decifrar.
— E se ela vier viver connosco? — perguntei de repente, surpreendendo-me até a mim própria.
Rui olhou para mim como se eu tivesse enlouquecido.
— Achas mesmo que isso ia resultar? Tu sabes como ela é… E nós precisamos do nosso espaço.
Fiquei calada. Sabia que ele tinha razão. A última vez que ela ficou cá em casa durante uma semana por causa das obras no prédio dela quase acabou em tragédia: discussões por causa da televisão alta à noite, críticas à forma como educávamos a Leonor…
Naquela noite sonhei com o passado: eu pequena, escondida atrás da porta enquanto ouvia a minha mãe chorar sozinha na cozinha; eu adolescente, a prometer a mim mesma que nunca seria como ela; eu adulta, presa num ciclo de culpa e obrigação.
No sábado seguinte fui visitá-la ao bairro onde vivia desde sempre — prédios antigos com roupa estendida nas varandas e vizinhas à janela a comentar tudo e todos.
Ela abriu-me a porta com um sorriso cansado.
— Estás magra — disse logo, em vez de “olá”.
Sentei-me no sofá gasto da sala enquanto ela preparava chá.
— Mãe… Temos de falar seriamente sobre isto tudo. Não posso continuar sempre a resolver-te os problemas. Eu também tenho uma família agora…
Ela pousou as chávenas na mesa com força demais.
— Achas que eu gosto disto? Achas que é fácil pedir-te ajuda? Sempre fiz tudo sozinha! Mas agora estou velha e cansada… E tu és minha filha!
A voz dela tremeu e vi lágrimas nos olhos dela pela primeira vez em muitos anos.
— Eu sei… — sussurrei — Mas também preciso de ti às vezes. Preciso que percebas que não sou só tua filha: sou mãe da Leonor, sou mulher do Rui… Sou eu própria!
Ela sentou-se ao meu lado e ficámos em silêncio durante longos minutos. Pela primeira vez senti que talvez estivéssemos ambas demasiado presas ao passado para conseguirmos avançar.
No fim desse mês consegui arranjar algum dinheiro para lhe dar — menos do que ela queria, mas o suficiente para ganhar tempo até encontrar outra solução. Combinei com ela ir à Segurança Social juntas na semana seguinte e prometi ajudá-la a procurar um quarto mais barato se fosse preciso.
Não foi fácil. Houve discussões, lágrimas e silêncios pesados pelo meio. Mas também houve momentos de ternura inesperada: um abraço apertado quando menos esperava; um elogio tímido à forma como educo a Leonor; um pedido de desculpa sussurrado numa manhã cinzenta.
Hoje olho para trás e vejo tudo com outros olhos. Percebo agora que perdoar não é esquecer nem fingir que nada aconteceu — é aceitar as nossas limitações e tentar fazer melhor daqui para a frente.
Às vezes pergunto-me: quantas vezes podemos perdoar sem nos perdermos pelo caminho? E será possível amar alguém sem nos anularmos por completo? Gostava de saber o que vocês pensam.