Pedido à Janela: Quando Bati à Porta do Senhor Almeida

— Não vás, Zuzana. Por favor, não vás — sussurrou a minha mãe, com a voz embargada, enquanto eu calçava as botas junto à porta da cozinha. O cheiro a sopa de couve pairava no ar, mas o estômago estava apertado demais para pensar em comida.

— Mãe, não temos escolha. O Miguel tem consulta amanhã em Vila Real. Sem carro, como é que vamos levá-lo? — respondi, tentando esconder o tremor na voz. O Miguel, do outro lado da mesa, olhava para mim com aqueles olhos grandes e tristes, os dedos magros a brincar com a roda da cadeira.

— O senhor Almeida não gosta de nós. Nunca gostou. Desde que o pai morreu… — A minha mãe não terminou a frase. Ficou ali, a olhar para o chão de tijoleira, como se as palavras lhe pesassem mais do que o luto.

— Eu vou — disse, mais para mim do que para ela. Peguei no casaco e saí, sentindo o frio da tarde a cortar-me a pele. O caminho até à casa do senhor Almeida era curto, mas cada passo parecia pesar uma tonelada. A aldeia estava silenciosa, só se ouvia o ladrar distante de um cão e o vento a sacudir as oliveiras.

Quando cheguei ao portão de ferro, hesitei. Lembrei-me das histórias que se contavam sobre ele: que era avarento, que nunca sorria, que tinha feito fortuna a comprar terras dos vizinhos em dificuldades. Mas também me lembrei do dia em que o vi chorar no cemitério, sozinho, depois do funeral da mulher. Respirei fundo e bati à porta.

O som ecoou pela casa grande e fria. Esperei. Ouvi passos pesados, depois o ranger da porta.

— O que queres? — perguntou ele, sem sequer abrir totalmente a porta. O rosto estava meio escondido na sombra, mas os olhos brilhavam duros.

— Boa tarde, senhor Almeida. Desculpe incomodar… — comecei, sentindo as palavras tropeçarem-me na boca. — O nosso carro avariou. O Miguel tem consulta amanhã no hospital. Precisávamos de uma boleia, ou… talvez pudesse emprestar-nos o carro.

Ele ficou a olhar para mim durante tanto tempo que pensei que me ia fechar a porta na cara. Depois, suspirou.

— E porque havia de ajudar-vos? A tua mãe nunca me dirigiu palavra desde que o teu pai morreu.

Senti o rosto arder de vergonha e raiva. — A minha mãe tem orgulho. Mas sempre lhe fomos gratos pelo que fez pelo meu pai quando ele adoeceu.

Ele fez um gesto brusco com a mão. — Isso foi há muitos anos. Agora todos só querem saber do que tenho. Acham que sou um velho rico sem coração.

— Não é verdade — disse, com mais firmeza do que sentia. — Só lhe estou a pedir ajuda porque não temos outra saída.

O senhor Almeida ficou calado. Depois, abriu mais a porta.

— Amanhã às sete. Não me façam esperar.

Voltei para casa com o coração aos pulos. A minha mãe chorou em silêncio quando lhe contei. O Miguel sorriu pela primeira vez em dias.

Na manhã seguinte, o senhor Almeida apareceu à hora combinada. O carro cheirava a tabaco velho e couro gasto. O Miguel entrou com dificuldade, mas o senhor Almeida ajudou-o sem dizer palavra.

Durante a viagem, o silêncio era pesado. O Miguel olhava pela janela, fascinado com as árvores a correrem lá fora. A minha mãe apertava as mãos no colo.

— O Miguel gosta de futebol — disse eu, tentando quebrar o gelo.

O senhor Almeida olhou pelo retrovisor. — Eu também gostava. Antes do acidente do meu filho.

A minha mãe ergueu os olhos, surpresa. — Não sabia que tinha um filho.

Ele encolheu os ombros. — Morreu há muitos anos. Era mais novo do que o Miguel.

O silêncio voltou, mas desta vez era diferente. Havia uma tristeza partilhada ali, uma dor antiga que nos unia sem palavras.

No hospital, o senhor Almeida esperou por nós. Comprou um sumo ao Miguel e ficou sentado ao lado dele enquanto esperávamos pela consulta. Vi-os rir juntos de uma piada qualquer sobre jogadores do Benfica.

No regresso, o senhor Almeida parou o carro junto ao nosso portão e ficou a olhar para a nossa casa pequena e velha.

— Se precisarem de ajuda, digam — murmurou, antes de arrancar.

A partir desse dia, tudo mudou. O senhor Almeida começou a aparecer lá em casa com sacos de batatas, lenha para o inverno, até uma televisão velha para o Miguel ver os jogos. A aldeia começou a falar: diziam que a minha mãe andava metida com ele, que queríamos era a herança dele. A minha mãe sofria em silêncio, mas nunca deixou de agradecer.

Um dia, encontrei o senhor Almeida sentado no banco do jardim, com o Miguel ao lado.

— Sabe, Zuzana — disse ele —, às vezes penso que Deus me tirou tudo para me obrigar a olhar para os outros.

Sentei-me ao lado dele. — E agora?

Ele sorriu, cansado. — Agora percebo que dar é melhor do que guardar.

Os meses passaram. O Miguel melhorou muito com as consultas regulares. A minha mãe voltou a sorrir. Eu comecei a ajudar o senhor Almeida na horta dele, e ele ensinou-me tudo sobre enxertar oliveiras e podar videiras.

Mas nem tudo eram rosas. Um dia, o primo do senhor Almeida apareceu vindo da cidade, furioso.

— O tio está a ser enganado por esta gente! Só querem o seu dinheiro! — gritou ele à porta da nossa casa.

O senhor Almeida enfrentou-o com uma calma impressionante.

— Eles deram-me mais família do que tu alguma vez deste — respondeu.

O primo foi-se embora, mas deixou um rasto de veneno na aldeia. As pessoas começaram a virar-nos a cara na missa, os vizinhos deixaram de nos cumprimentar.

Uma noite, ouvi a minha mãe chorar baixinho na cozinha.

— Talvez devêssemos afastar-nos do senhor Almeida — disse ela, com os olhos vermelhos. — Não quero mais problemas.

Mas eu sabia que não podia abandonar quem nos tinha ajudado quando mais precisávamos.

O tempo passou. O senhor Almeida adoeceu no inverno seguinte. Fomos nós que cuidámos dele: levámo-lo ao hospital, demos-lhe sopa quente, ficámos ao lado dele nas noites frias.

No dia em que morreu, segurou-me a mão e sussurrou:

— Obrigado por me devolveres uma família.

No funeral, quase ninguém apareceu. Só nós, o padre e dois vizinhos mais velhos.

Dias depois, recebemos uma carta do notário: o senhor Almeida tinha deixado parte das terras à minha mãe e uma pequena quantia para o Miguel continuar os tratamentos.

A aldeia nunca nos perdoou totalmente. Mas eu aprendi que às vezes é preciso coragem para pedir ajuda — e ainda mais coragem para aceitá-la.

Agora, sentada à janela da nossa casa renovada, olho para os campos verdes e penso: quantas vidas mudariam se deixássemos o orgulho de lado e abríssemos a porta ao outro? Será que algum dia aprendemos mesmo a perdoar e a confiar?