Pausa? Primeiro paga o empréstimo! – Drama familiar por causa de um apartamento em Lisboa

— Não acredito, mãe! Como é que deixaste o Ricardo entrar aqui sem me dizer nada? — gritei, a voz embargada entre raiva e desespero, enquanto largava as malas no chão do corredor. O cheiro a arroz de pato invadia o apartamento, misturando-se com o perfume barato da minha mãe. O Ricardo apareceu à porta da sala, com aquele ar de quem nunca fez nada de mal na vida, mas eu sabia bem demais o que se passava por trás daquele sorriso.

— Filha, ele não tinha para onde ir. E tu estavas de férias, pensei que não te importavas — respondeu a minha mãe, ajeitando o lenço na cabeça como se isso fosse desculpa suficiente para invadir o meu espaço.

Eu sentia o coração a bater tão forte que quase não conseguia respirar. O apartamento era pequeno, um T2 em Benfica, comprado à custa de anos de trabalho e um empréstimo que ainda me tirava o sono todas as noites. A minha mãe nunca me ajudou com uma prestação sequer. Quando pedi apoio, disse-me sempre: “Quem quer casa, arca com as consequências.” Mas agora, para o Ricardo, tudo era diferente.

— Não me importava? Mãe, este apartamento é meu! Estou a pagar-o sozinha! — tentei controlar as lágrimas, mas elas já me escorriam pelo rosto. O Ricardo encolheu os ombros e voltou para o sofá, como se nada fosse.

O meu marido, João, ficou parado à porta, sem saber se devia intervir ou não. Os nossos filhos estavam cansados da viagem do Gerês e só queriam dormir. Mas como é que eu podia descansar com aquela sensação de traição?

— Olha lá, Ricardo, vais ficar aqui até quando? — perguntei, tentando manter a voz firme.

— Sei lá… até arranjar trabalho. A mãe disse que não te importavas — respondeu ele, sem sequer olhar para mim.

A minha mãe sentou-se à mesa da cozinha e suspirou alto:

— Filha, tens tudo na vida. Um marido bom, filhos saudáveis, um emprego fixo. O teu irmão está numa fase difícil. Não podes ajudar?

A raiva crescia dentro de mim como uma onda prestes a rebentar. Lembrei-me de todas as vezes em que precisei de ajuda e ouvi apenas silêncio do outro lado. Lembrei-me das noites em claro a fazer contas à vida para pagar o empréstimo, das discussões com o João sobre as despesas, dos sonhos adiados porque “primeiro está a casa”.

— Mãe, eu ajudei-me sozinha! E agora tenho de sustentar também o Ricardo? — perguntei, já sem forças.

O João puxou-me para o lado:

— Ana, calma… vamos falar disto com cabeça fria. Não vale a pena discutir à frente dos miúdos.

Mas eu não conseguia acalmar-me. Senti-me invadida, desrespeitada naquilo que era meu por direito. Passei anos a ouvir que era egoísta por querer sair de casa cedo, por querer independência. Agora que finalmente tinha conquistado alguma estabilidade, parecia que tudo podia ser posto em causa pela vontade dos outros.

Naquela noite quase não dormi. Ouvia os risos abafados do Ricardo e da minha mãe na sala enquanto eu tentava adormecer os miúdos no quarto apertado. O João tentava acalmar-me:

— Ana, amanhã falamos com calma. Talvez possamos ajudar o teu irmão a encontrar um quarto noutro sítio…

Mas eu sabia que não era só isso. Era tudo o que aquela situação representava: anos de favoritismo da minha mãe pelo Ricardo, anos em que fui sempre a filha responsável e ele o menino protegido. Era a sensação de nunca ser suficiente.

No dia seguinte acordei cedo e fui à cozinha. A minha mãe estava a preparar café como se nada fosse.

— Mãe, precisamos de falar — disse-lhe baixinho.

Ela olhou para mim com aquele olhar cansado de quem acha que já viu tudo na vida.

— Filha, tu tens de aprender a partilhar. A família é isso mesmo.

— Partilhar? Eu partilhei tudo a vida inteira! Até os meus sonhos tive de adiar por causa dos outros! — respondi, sentindo a voz tremer.

O Ricardo entrou na cozinha com ar sonolento:

— Olha lá, Ana… tens aí uns trocos para eu ir ao centro? Preciso de comprar umas cenas.

Olhei para ele incrédula.

— Tu achas mesmo que isto é um hotel? — perguntei-lhe.

Ele encolheu os ombros e saiu da cozinha sem dizer mais nada.

A minha mãe suspirou:

— Não sejas má. Ele está perdido…

— E eu? Eu também já estive perdida! E ninguém me estendeu a mão! — gritei.

Nesse momento percebi que estava sozinha naquela luta. O João tentava apoiar-me mas não compreendia o peso daquela história antiga entre mim e a minha mãe. Os meus filhos olhavam para mim assustados sempre que levantava a voz.

Durante semanas vivi num estado de tensão constante. O Ricardo não procurava trabalho a sério; passava os dias no sofá ou a sair com amigos antigos do bairro. A minha mãe defendia-o sempre:

— Ele precisa de tempo…

Eu sentia-me cada vez mais sufocada na minha própria casa. Comecei a chegar mais tarde do trabalho só para evitar confrontos. O João sugeriu irmos passar uns dias à casa dos pais dele em Setúbal para espairecer.

Quando voltámos, encontrei contas por pagar em cima da mesa e comida estragada no frigorífico. O Ricardo tinha feito uma festa enquanto estávamos fora. Perdi completamente o controlo:

— Basta! Ou sais daqui ou eu saio!

A minha mãe chorou como nunca a tinha visto chorar antes:

— Vais pôr o teu irmão na rua? Depois de tudo?

— Depois de tudo o quê? Depois de eu ter sido sempre a segunda escolha? Depois de ter carregado esta família às costas enquanto ele fazia asneiras?

O Ricardo levantou-se finalmente do sofá:

— Não te preocupes, Ana. Eu vou embora. Não preciso da tua caridade.

Saiu porta fora sem olhar para trás. A minha mãe ficou sentada à mesa, cabisbaixa.

Durante dias não nos falámos. O João tentava mediar mas eu sentia-me vazia por dentro. Tinha perdido a paz no único lugar onde devia sentir-me segura.

Passaram-se meses até voltar a falar com o Ricardo. Soube por amigos comuns que estava a dormir em casa de conhecidos e a trabalhar num café mal pago no Cais do Sodré. A minha mãe culpava-me sempre que podia:

— Se tivesses sido mais paciente…

Mas eu sabia que tinha feito tudo o que podia. Não era justo continuar a sacrificar-me pelos erros dos outros.

Hoje olho para trás e pergunto-me: será que fiz bem? Será que devia ter sido mais compreensiva ou simplesmente pus um limite saudável? Quantas vezes temos de abdicar de nós próprios em nome da família?

E vocês? Até onde iriam por um irmão? Onde traçam a linha entre ajudar e perder-se?