Partida Silenciosa: Quando o Amor se Torna Prisão

— Vais mesmo sair assim, sem dizer nada? — ouvi a voz da minha consciência gritar enquanto fechava a porta devagar, tentando não fazer barulho. O relógio marcava três da tarde e o sol de Lisboa entrava pela janela do corredor, iluminando as malas pequenas que consegui arrastar até à entrada. O silêncio da casa era estranho, quase ameaçador. O João, meu marido, e a mãe dele tinham ido ao supermercado. Eu sabia que tinha pouco tempo.

O coração batia-me tão forte que parecia querer saltar do peito. Cada passo até ao elevador era um desafio à minha coragem. Lembrei-me da última discussão com a Dona Amélia, minha sogra, dois dias antes:

— Não percebo como é que o João casou contigo. Nem sabes fazer um arroz decente! — disse ela, atirando a panela para cima do balcão.

O João ficou calado, como sempre. Limitou-se a olhar para mim com aquele ar cansado, como se eu fosse o problema. Senti-me sozinha naquela cozinha, como me sentia todos os dias desde que nos mudámos para o apartamento deles em Benfica. A promessa de uma vida a dois rapidamente se transformou numa rotina sufocante, onde cada gesto meu era julgado, cada palavra pesada.

No elevador, as lágrimas começaram a cair. Não queria chorar, mas não consegui evitar. Lembrei-me do dia do nosso casamento na Igreja de São Domingos. O João parecia tão apaixonado, prometeu-me que seríamos uma equipa. Mas bastou a mãe dele perder o emprego e vir morar connosco para tudo mudar. Ela ocupou o nosso espaço, as nossas conversas e até o nosso quarto — porque “a senhora precisa de repouso”, dizia ele.

Os meses passaram e fui desaparecendo. Deixei de sair com as minhas amigas, deixei de ir ao ginásio, deixei até de pintar as unhas porque Dona Amélia dizia que era “coisa de mulher fútil”. O João? Ele limitava-se a trabalhar e a concordar com tudo o que a mãe dizia. Quando tentei falar com ele sobre como me sentia, respondeu:

— Não compliques as coisas, Sofia. A minha mãe está numa fase difícil.

Mas e eu? Em que fase estava eu?

A porta do prédio fechou-se atrás de mim com um estrondo que me fez estremecer. Senti-me culpada por sair assim, sem avisar ninguém. Mas também senti um alívio estranho — como se finalmente pudesse respirar depois de meses debaixo de água.

Chamei um táxi e dei ao motorista o endereço do quarto que aluguei através de um anúncio online. Era pequeno, mas tinha uma janela grande e uma cama só para mim. Durante o caminho, olhei para as ruas familiares e perguntei-me se algum dia voltaria a sentir que pertencia a algum lugar.

Quando cheguei ao quarto, sentei-me na cama e fiquei ali, imóvel. O telemóvel vibrava sem parar — chamadas do João, mensagens da minha mãe preocupada porque eu não lhe contei nada também. Não sabia o que dizer. Como explicar que o amor pode ser uma prisão? Que às vezes fugir é o único caminho para sobreviver?

Naquela noite não dormi. Fiquei a olhar para o teto, ouvindo os sons da cidade lá fora. Senti medo do futuro, mas também uma esperança tímida de que poderia recomeçar. No dia seguinte, liguei à minha irmã Mariana.

— Sofia? Onde estás? O João ligou-me em pânico! — disse ela assim que atendeu.

— Preciso de tempo, Mana. Não aguentava mais… — respondi com voz trémula.

— Mas vais voltar? Vais mesmo deixar tudo assim?

— Não sei… Preciso de pensar em mim pela primeira vez.

O silêncio dela foi pesado. Sempre fomos muito próximas, mas ela nunca gostou do João nem da forma como ele me tratava desde que casámos. Senti que ela queria apoiar-me mas também estava preocupada com as consequências.

Nos dias seguintes tentei organizar a minha vida. Procurei trabalho — qualquer coisa que me permitisse pagar o quarto e ter alguma independência. Arranjei um emprego numa pastelaria perto do Campo Pequeno. O patrão era simpático e as colegas acolheram-me bem. Pela primeira vez em muito tempo senti-me útil, valorizada.

Mas as noites eram difíceis. A culpa corroía-me por dentro. Lembrava-me do olhar magoado do João quando finalmente lhe atendi o telefone:

— Como pudeste fazer isto? A minha mãe está arrasada! Eu… eu não percebo!

— Eu também não percebo, João… Só sei que não aguentava mais — respondi entre lágrimas.

Ele chorou do outro lado da linha. Pela primeira vez em anos ouvi-o vulnerável, sem aquela armadura de filho perfeito.

— E agora? O que vai ser de nós?

Não soube responder.

A minha mãe também me ligou várias vezes. No início estava zangada:

— Sofia, isto não se faz! O casamento é para toda a vida! Tens de aprender a ceder!

Mas depois percebeu que eu estava mesmo no limite:

— Filha… só quero que sejas feliz. Mas lembra-te: fugir não resolve tudo.

Será que não resolve mesmo? Ou às vezes é preciso fugir para sobreviver?

Os meses passaram e fui reconstruindo-me aos poucos. Fiz novas amizades na pastelaria — a Carla, divorciada há dois anos; o Miguel, que veio do Porto à procura de trabalho; até a Dona Rosa, cliente habitual, começou a trazer-me bolinhos caseiros e conselhos sobre a vida.

Comecei a ir ao cinema sozinha aos domingos e descobri que gostava da minha própria companhia. Voltei a pintar as unhas — vermelho vivo — só porque sim. Senti-me livre pela primeira vez desde que casei.

O João tentou falar comigo várias vezes. Chegou a aparecer na pastelaria um dia:

— Sofia… podemos conversar?

Fomos até ao jardim da Gulbenkian e sentámo-nos num banco à sombra das árvores.

— Eu devia ter-te ouvido mais… Devia ter defendido o nosso espaço — disse ele com voz baixa.

— Não sei se ainda há espaço para nós… — respondi honestamente.

Ele chorou outra vez. E eu também chorei. Porque apesar de tudo ainda gostava dele — mas gostava mais de mim agora.

Voltámos a falar algumas vezes depois disso, mas nunca mais voltámos a ser um casal. Ele ficou com a mãe dele e eu fiquei comigo mesma.

Hoje olho para trás e vejo quanto cresci desde aquele dia em que fechei a porta devagar para não acordar ninguém. Ainda sinto culpa às vezes — pela dor que causei ao João, pela preocupação da minha mãe, pelo silêncio pesado entre mim e a sogra.

Mas também sinto orgulho por ter tido coragem de escolher-me a mim própria quando ninguém mais o fazia.

Será egoísmo querer ser feliz? Ou será apenas sobrevivência? Quantas mulheres continuam presas por medo ou culpa? E vocês… já sentiram que precisavam fugir para se reencontrar?