Os Nossos Filhos Tentaram Expulsar-nos da Nossa Própria Casa
— Não podes estar a falar a sério, Miguel! — gritei, sentindo o coração a bater tão forte que quase me doía no peito. O meu filho mais velho, com os olhos frios e a postura rígida, olhava-me como se eu fosse um estranho. Luísa, sentada ao meu lado no sofá gasto da sala, apertava-me a mão com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos.
— Pai, já falámos sobre isto. Eu e o João achamos que está na altura de pensarem em mudar-se. A casa é grande demais para vocês dois. — A voz dele era seca, quase burocrática.
O João, sempre mais calado, evitava o meu olhar. Mexia nervosamente nas chaves do carro, como se quisesse desaparecer dali. O silêncio entre nós era pesado, cortado apenas pelo tique-taque do velho relógio de parede.
Como chegámos aqui? Perguntava-me isso vezes sem conta. Passei a vida inteira a trabalhar na fábrica de cortiça em Santa Maria da Feira. Luísa costurava para fora, noites inteiras à máquina, para que nada faltasse aos nossos filhos. O Miguel sempre foi o orgulho da casa: bom aluno, entrou em Engenharia no Porto. O João, mais rebelde, acabou por seguir para França durante uns anos, mas voltou quando as saudades apertaram.
A nossa casa… Não era só cimento e tijolo. Era o cheiro do pão quente ao domingo de manhã, as gargalhadas nas noites de Natal, as discussões sobre futebol à mesa. Era o nosso refúgio depois de dias duros, o lugar onde vi os meus filhos darem os primeiros passos.
— Vocês querem pôr-nos fora da nossa própria casa? — perguntei, a voz embargada pela incredulidade.
— Não é isso, pai — respondeu o Miguel, impaciente. — Só achamos que seria melhor para todos. Podíamos vender a casa e dividir o dinheiro. Vocês podiam ir para um apartamento mais pequeno ou até para um lar confortável. Já não têm idade para estas escadas…
Luísa começou a chorar baixinho. Senti-me esmagado por uma tristeza tão funda que mal conseguia respirar. Tantos anos a sacrificar tudo por eles… E agora isto.
— Acham mesmo que isto é melhor para todos? Ou é só melhor para vocês? — perguntei, olhando-os nos olhos.
O João levantou-se de repente.
— Pai, não compliques! Eu preciso de dinheiro para abrir o meu negócio. O Miguel também tem despesas com os miúdos… Não estamos a pedir nada de mais! — disse ele, quase a gritar.
— Nada de mais? Querem vender a casa onde cresci, onde vivi com a vossa mãe toda uma vida! — respondi, sentindo uma raiva surda a crescer dentro de mim.
A discussão arrastou-se durante horas. O Miguel falava em racionalidade, em futuro. O João falava em oportunidades e necessidades. Mas eu só via egoísmo e ingratidão.
Nessa noite não dormi. Fiquei sentado na cozinha escura, ouvindo o vento lá fora e pensando em tudo o que tinha feito por eles. Lembrei-me das vezes em que fiquei sem comer para lhes comprar livros escolares. Das noites em claro quando estavam doentes. Dos sonhos adiados para lhes dar uma vida melhor.
No dia seguinte, Luísa estava devastada.
— António… E se eles tiverem razão? E se já não formos capazes de cuidar disto tudo? — murmurou ela, os olhos vermelhos de tanto chorar.
— Não vou sair daqui de livre vontade — respondi. — Esta casa é nossa. Lutámos por ela juntos.
Os dias seguintes foram um tormento. Os rapazes deixaram de nos visitar. As chamadas tornaram-se frias e distantes. Os vizinhos começaram a comentar: “Ouvi dizer que os filhos do António querem vender a casa…” Senti vergonha e humilhação como nunca antes.
Uma tarde, recebi uma carta registada: uma intimação para comparecer no tribunal. Os meus próprios filhos tinham avançado com um processo para nos declarar incapazes de gerir os nossos bens! Diziam que estávamos senis, que já não tínhamos condições para viver sozinhos.
Luísa desmaiou quando leu aquilo. Corri com ela para o hospital, as mãos a tremer tanto que mal conseguia segurar no volante. No hospital, enquanto esperava notícias dela, senti-me completamente sozinho no mundo.
Quando voltou para casa, Luísa era uma sombra do que tinha sido. Passava os dias calada, olhando pela janela como se esperasse ver os filhos voltarem com um pedido de desculpas.
O processo arrastou-se durante meses. Tive de pedir ajuda ao senhor Manuel da Junta de Freguesia para arranjar um advogado. Fui chamado a exames médicos humilhantes para provar que estava lúcido e capaz.
No tribunal, olhei para os meus filhos sentados do outro lado da sala e quase não os reconheci. O Miguel evitava o meu olhar; o João parecia arrependido mas não dizia nada.
O juiz ouviu-nos a todos. Ouviu os vizinhos, ouviu o médico de família que garantiu que eu estava bem de saúde mental. No final, decidiu a nosso favor: podíamos continuar na nossa casa.
Quando saímos do tribunal, Luísa chorava de alívio mas também de tristeza.
— Perdemos os nossos filhos… — sussurrou ela.
Eu não sabia o que responder. A vitória soube-me amarga. A casa continuava nossa mas o silêncio dos filhos era ensurdecedor.
Passaram-se meses até recebermos uma mensagem do João: “Desculpa pai.” Só isso. O Miguel nunca mais falou connosco.
Hoje passo os dias no jardim, cuidando das roseiras que plantei quando os rapazes eram pequenos. Luísa recuperou algum ânimo mas nunca mais foi a mesma.
Às vezes pergunto-me: onde foi que errámos? Será que demos demais? Ou será que nunca soubemos dizer não?
E vocês? O que fariam se estivessem no meu lugar? Até onde vai o amor de um pai?