Os meus sogros preferem o carro ao neto? A minha luta por uma família unida
— Outra vez não podem vir? — perguntei, tentando controlar a voz para não soar demasiado desesperada. Do outro lado da linha, a voz da minha sogra, Dona Lurdes, soava abafada, como se estivesse a falar de dentro do porta-luvas do tal carro novo que compraram há três meses.
— Oh, querida, sabes como é… O Joaquim está a polir o carro e eu tenho de lhe dar uma ajuda. Depois ainda temos de ir ao centro buscar umas peças para o rádio. Talvez para a semana, sim?
Desliguei o telefone devagar, sentindo o peso do silêncio na sala. O Martim, com os seus três anos, brincava no tapete com um camião de plástico. Olhou para mim com aqueles olhos grandes e castanhos, tão parecidos com os do pai.
— Mamã, os avós vêm hoje?
A pergunta ficou a ecoar na minha cabeça. Como explicar a uma criança que os avós preferem passar o domingo a limpar um carro do que a brincar com ele? O meu marido, Rui, entrou na sala nesse momento, trazendo o cheiro do café acabado de fazer.
— Eles vêm? — perguntou, já sabendo a resposta.
— Não. O carro outra vez. — Não consegui evitar que a mágoa transparecesse na minha voz.
Rui suspirou e sentou-se ao meu lado. — Eles são assim. Sempre foram. Desde que compraram aquele carro novo, parece que tudo gira à volta disso.
— Mas é o neto deles! — explodi finalmente. — O Martim sente falta deles. Eu também. Sinto-me sozinha nesta casa, Rui. A tua mãe nunca me liga só para saber de mim ou do Martim. Só fala do carro, das viagens que querem fazer, das revisões… Até parece que têm mais orgulho no carro do que no próprio filho ou neto!
Ele passou a mão pelo meu ombro, mas percebi que estava desconfortável. — Não sei o que te dizer. O meu pai sempre foi assim, sabes? Quando eu era miúdo, também passava mais tempo na garagem do que comigo.
Olhei para o Martim e senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Não era justo. Eu cresci numa aldeia perto de Viseu, onde os avós eram parte da mobília da casa: estavam sempre presentes, ajudavam, ralhavam, davam colo e histórias. Quando casei com o Rui e viemos viver para Lisboa, achei que ia ser igual. Mas aqui tudo é diferente. As pessoas fecham-se nos seus mundos pequenos e egoístas.
Na semana seguinte tentei de novo. Liguei à Dona Lurdes numa manhã de sábado.
— Olá, sogra! O Martim tem saudades vossas. Queríamos convidar-vos para almoçar cá em casa amanhã.
— Oh filha… Amanhã não dá mesmo jeito. Temos de ir ao Porto buscar umas peças especiais para o carro. Sabes como é difícil encontrá-las cá em Lisboa…
— Mas podiam vir depois do almoço! Ou então deixavam o Martim convosco enquanto iam às compras…
— Ai não dá mesmo jeito, querida. O Joaquim não gosta de deixar ninguém no carro quando vai às lojas de peças.
Desliguei antes que ela dissesse mais alguma coisa sobre o raio do carro. Senti-me ridícula por estar quase a chorar por causa disto.
No domingo seguinte fomos nós até à casa deles em Odivelas, sem avisar. O Martim ia todo contente no banco de trás, com um desenho feito para os avós.
Quando chegámos, vimos logo o carro estacionado à porta, reluzente como se tivesse acabado de sair do stand. O meu sogro estava inclinado sobre o capô, a passar um pano com todo o cuidado do mundo.
— Olá! — gritei, tentando soar animada.
O Joaquim olhou-nos como se tivéssemos interrompido um ritual sagrado.
— Vieram sem avisar? — perguntou, franzindo o sobrolho.
— O Martim queria ver-vos — disse Rui, tentando aliviar o ambiente.
A Dona Lurdes apareceu à porta com um avental manchado de farinha.
— Ai filha… Não temos nada preparado para vos receber!
— Não faz mal — sorri forçadamente. — Só queríamos passar um bocadinho convosco.
O Martim correu até aos avós com o desenho na mão. A avó pegou-lhe ao colo por uns segundos, mas logo pousou-o para ir ver se o bolo no forno não queimava. O avô deu-lhe uma palmadinha na cabeça e voltou ao carro.
Ficámos ali meia hora sentados na sala fria, a ouvir o barulho da televisão e os comentários do meu sogro sobre as vantagens do novo sistema de travagem assistida.
No regresso a casa, Martim adormeceu no carro. Eu chorei baixinho para não acordar ninguém.
As semanas passaram e fui desistindo aos poucos de tentar forçar encontros. O Rui dizia-me para não me chatear tanto: “Eles são assim mesmo.” Mas eu não conseguia aceitar aquela indiferença. Comecei a sentir-me cada vez mais isolada.
Um dia, depois de deixar o Martim na creche e antes de ir trabalhar para a pastelaria onde sou empregada, sentei-me num banco do jardim e liguei à minha mãe.
— Mãe… Sinto-me tão sozinha aqui em Lisboa. Os pais do Rui nem ligam ao Martim…
Ela ouviu-me em silêncio e depois disse:
— Filha, há pessoas que não sabem amar como nós gostaríamos. Não podes obrigá-los a serem avós como tu imaginas. Mas também não deixes que isso te faça sentir menos mãe ou menos família.
As palavras dela ficaram comigo durante dias. Comecei a pensar: será que estou mesmo a exagerar? Será que espero demais dos outros?
No Natal desse ano decidi convidar os meus sogros para passarem connosco em Viseu, com os meus pais e irmãos. Achei que talvez num ambiente diferente eles se sentissem mais próximos do Martim.
Aceitaram o convite mas… foram no próprio carro e passaram metade da noite a falar sobre a viagem e sobre como o carro se portou bem na autoestrada.
No fim da noite, enquanto todos brincavam com o Martim à volta da árvore de Natal, reparei que os meus sogros estavam sentados juntos no sofá, a olhar para fotos do carro no telemóvel.
Senti uma tristeza profunda mas também uma espécie de alívio: talvez nunca mudem. Talvez nunca sejam os avós presentes que eu sonhei para o meu filho.
Hoje olho para o Martim e vejo nele uma alegria genuína quando está com os meus pais ou com os amigos da escola. Aprendi a valorizar as pequenas famílias que vamos construindo fora dos laços de sangue.
Mas ainda me pergunto: será justo desistir de tentar? Ou será que há laços familiares que simplesmente não podem ser forçados? E vocês, já sentiram esta solidão dentro da própria família?