Os Meus Filhos Convidaram-me para Ficar, Mas Quase Venderam a Minha Casa nas Minhas Costas
— Mãe, tens de perceber que é para o teu bem! — gritava a minha filha, Ana, enquanto eu sentia o coração apertar-se no peito. O eco da sua voz misturava-se com o cheiro a café acabado de fazer e com o silêncio desconfortável do meu velho apartamento em Benfica.
Eu olhava para ela, para o meu filho Luís, sentado à mesa com os olhos baixos, e sentia-me uma intrusa na minha própria casa. Tinha 78 anos, mas ainda me sentia capaz de tomar as minhas decisões. Até ao ano passado, subia as escadas do prédio sem pestanejar, fazia as minhas compras no mercado da Dona Emília e ainda ajudava a vizinha do lado com os netos. Mas tudo mudou quando a pneumonia me levou ao hospital durante três semanas e, logo depois, uma queda parva na cozinha me deixou com a anca partida.
A recuperação foi lenta e dolorosa. Os médicos diziam que eu era forte, mas cada passo era uma luta. Ana vinha todos os dias ajudar-me a tomar banho e preparar as refeições. Luís aparecia ao fim de semana, sempre apressado, sempre ao telemóvel. Um dia, Ana sugeriu que eu fosse viver com ela e o marido, o Pedro. “Assim estás mais acompanhada e eu posso ajudar-te melhor”, disse ela. Hesitei, mas cedi — afinal, quem não quer sentir-se amparada pelos filhos?
A primeira noite na casa da Ana foi estranha. O quarto era pequeno, cheirava a tinta fresca e as paredes estavam nuas. Senti falta dos meus retratos antigos, dos bordados feitos pela minha mãe, do relógio de cuco que o meu marido trouxera da Suíça há quarenta anos. O Pedro era simpático, mas notava-se que não estava confortável com a minha presença. Os netos eram barulhentos e pouco me ligavam.
— Mãe, tens de pensar no futuro — insistia Ana todos os dias. — A tua casa está velha, cheia de humidade. Não achas melhor vendermos aquilo? Assim ficas com dinheiro para o que precisares.
Eu desconversava. Aquela casa era tudo o que me restava do meu António. Foi lá que criámos os nossos filhos, onde chorei e ri, onde plantei as minhas roseiras no quintal minúsculo. Não queria desfazer-me dela.
Uma tarde, ouvi Ana ao telefone na cozinha:
— Sim, sim, já está tudo tratado com o notário. A escritura pode ser marcada para a próxima semana… Não se preocupe, a minha mãe está de acordo.
O sangue gelou-me nas veias. Entrei na cozinha devagarinho.
— Ana… com quem estás a falar?
Ela ficou branca como a cal.
— É só um amigo… nada de especial.
Mas eu sabia ler nos olhos dela quando mentia. Esperei até ela sair para ir buscar os netos à escola e fui ao quarto dela procurar pistas. No fundo da gaveta da secretária encontrei um envelope com papéis: uma procuração assinada por mim — ou melhor, uma assinatura falsificada — e um contrato-promessa de compra e venda da minha casa.
Senti-me traída como nunca antes na vida. Chorei baixinho para não alertar ninguém. Quando Luís apareceu nesse fim de semana, confrontei-o:
— Sabes o que a tua irmã anda a fazer?
Ele hesitou.
— Mãe… ela só quer o melhor para ti. E… precisamos todos de algum dinheiro agora…
A raiva subiu-me à cabeça.
— O melhor para mim? Ou para vocês? Eu não sou um fardo! Trabalhei toda a vida para ter aquela casa! Não vou deixar que me tirem tudo!
Nessa noite não dormi. Ouvia os passos de Ana no corredor, sentia o peso da traição no peito. No dia seguinte, fiz as malas devagarinho e chamei um táxi sem avisar ninguém. Pedi ao senhor António do rés-do-chão para me ajudar a subir as escadas quando cheguei ao meu apartamento. Sentei-me na minha poltrona gasta e chorei até adormecer.
Nos dias seguintes, Ana ligou dezenas de vezes. Não atendi nenhuma chamada. Luís apareceu à porta com um ramo de flores baratas e um ar envergonhado.
— Mãe… desculpa. Fomos longe demais.
Olhei-o nos olhos.
— Vocês esqueceram-se de quem sou eu? Acham que por estar velha deixei de ser gente?
Ele baixou a cabeça e saiu sem dizer mais nada.
A solidão pesava-me nos ossos, mas preferia isso à humilhação de ser tratada como um objeto descartável. Com o tempo, voltei a andar melhor — devagarinho, com bengala, mas com dignidade. As vizinhas começaram a aparecer mais vezes para conversar e trazer sopa quente.
Hoje olho para trás e pergunto-me: em que momento é que os filhos deixam de ver os pais como pessoas e passam a vê-los como obstáculos ou oportunidades? Será que algum dia vou conseguir perdoar esta traição? E vocês, o que fariam no meu lugar?