Os Ecos do Silêncio: Entre o Amor Não Dito e a Solidão
— Vais sair outra vez? — perguntei, com a voz presa na garganta, enquanto via o meu pai calçar os sapatos à pressa, o cheiro a aguardente ainda fresco no ar.
Ele nem me olhou. Limitou-se a resmungar qualquer coisa incompreensível, pegou nas chaves e bateu com a porta. O eco desse estrondo ficou a vibrar nas paredes da casa — e dentro de mim. Tinha 21 anos, mas sentia-me com 12, perdida naquele apartamento frio de Almada, onde o silêncio era mais pesado do que qualquer grito.
A minha mãe estava sentada à mesa da cozinha, os olhos fixos numa chávena de chá já fria. O cabelo despenteado, o olhar ausente. Tentei falar com ela:
— Mãe, não podemos continuar assim. Ele vai acabar por…
Ela interrompeu-me com um gesto brusco.
— Não digas disparates, Inês. O teu pai só precisa de tempo. Está cansado do trabalho.
O trabalho. Sempre o trabalho. Era a desculpa para tudo: para as ausências, para os murros nas portas, para os insultos sussurrados quando pensava que eu não ouvia. Mas eu ouvia tudo. Desde pequena que aprendi a decifrar o tom da voz dele, o ranger dos móveis quando chegava tarde e tropeçava nos próprios pés.
Na escola, invejava os colegas que falavam dos jantares em família, das férias no Algarve, das tardes de domingo no parque. Eu passava os meus domingos a limpar os cacos dos copos partidos e a inventar desculpas para as nódoas negras no braço da minha mãe.
Cresci assim: entre o medo e a esperança vã de que um dia tudo mudaria. Mas nada mudou. O tempo só tornou tudo mais denso, mais difícil de respirar.
Quando fiz 18 anos, pensei em sair de casa. Arranjar um quarto em Lisboa, trabalhar num café, estudar à noite. Mas depois olhava para a minha mãe — tão pequena na sua tristeza — e sentia-me presa por uma culpa que não era minha. Como podia deixá-la ali, sozinha com ele?
Os anos passaram e fui-me tornando invisível dentro da própria casa. O meu pai já nem se dava ao trabalho de esconder as garrafas. A minha mãe limitava-se a existir, como se cada dia fosse apenas mais um peso nos ombros.
Uma noite, ouvi-os discutir. Não era raro, mas dessa vez foi diferente. O som seco de uma bofetada cortou o silêncio. Corri para a sala e vi a minha mãe caída no chão, o rosto vermelho e os olhos cheios de lágrimas. Olhei para o meu pai — António — e pela primeira vez vi medo nos olhos dele.
— Sai daqui! — gritei-lhe, com uma raiva que nem sabia ter dentro de mim.
Ele hesitou por um segundo e depois saiu, tropeçando nas próprias pernas. Fiquei ali, ajoelhada ao lado da minha mãe, sem saber o que fazer.
— Porque é que não vais embora? — perguntei-lhe em voz baixa.
Ela olhou para mim como se eu fosse uma criança ingénua.
— E ir para onde? Com quê? Não percebes que não tenho nada?
Naquele momento percebi: ela estava tão presa quanto eu. Presa ao medo, à vergonha, à ideia de que não merecia mais do que aquilo.
A partir desse dia comecei a planear a minha fuga. Arranjei um trabalho numa papelaria perto da escola onde tinha estudado. Juntava cada cêntimo que podia, escondendo-o num frasco de café vazio no fundo do armário.
Mas sair não era assim tão simples. Cada vez que pensava em ir embora, sentia-me egoísta. E se ele fizesse pior à minha mãe? E se ela ficasse ainda mais sozinha?
O tempo foi passando e fui-me apagando por dentro. Os amigos afastaram-se — ninguém quer lidar com dramas alheios durante tanto tempo. Os meus tios fingiam não ver nada; diziam sempre “isso são coisas deles”.
Até que um dia recebi uma chamada do hospital: o meu pai tinha tido um acidente de carro. Bêbado, claro. Fui lá com a minha mãe — ela tremia tanto que mal conseguia andar.
No hospital, vi-o deitado na maca, vulnerável como nunca o tinha visto antes. Pela primeira vez senti pena dele — mas também raiva. Tanta raiva.
— Porque é que fazes isto connosco? — perguntei-lhe baixinho.
Ele olhou para mim com olhos vidrados.
— Eu nunca soube ser pai… — murmurou.
Saí dali com um nó na garganta. A minha mãe chorava baixinho no corredor.
Depois desse dia, tudo mudou e nada mudou ao mesmo tempo. O meu pai prometeu deixar de beber — promessa vã como tantas outras. A minha mãe continuou presa à rotina do medo e da resignação.
Eu? Eu finalmente decidi sair. Arranjei um quarto pequeno em Lisboa, num prédio antigo perto do Intendente. No início foi estranho: o silêncio era diferente daquele da casa dos meus pais — era um silêncio leve, quase confortável.
Mas a culpa não me largava. Ligava à minha mãe todos os dias; às vezes ela atendia, outras vezes não. O meu pai nunca mais me procurou.
Comecei a estudar Psicologia à noite — queria entender como é que as pessoas se perdem dentro de si mesmas sem darem por isso. Fiz amigos novos; alguns perceberam logo que havia algo partido em mim.
Uma noite, depois de um exame difícil, sentei-me na janela do meu quarto e chorei como há muito não chorava. Chorei por mim, pela minha mãe, até pelo meu pai. Chorei pelo amor que nunca chegou a ser dito naquela casa cheia de silêncios.
Hoje tenho 27 anos e continuo a tentar reconstruir-me aos bocadinhos. A minha mãe continua com ele; diz que agora está melhor, mas eu sei que é mentira. Às vezes penso em voltar atrás e tentar salvá-la — mas percebo que cada um tem o seu tempo para fugir das próprias prisões.
Pergunto-me muitas vezes: será possível amar quem nos magoa? Ou será que passamos a vida inteira à procura do amor que nunca tivemos?
E vocês? Já sentiram esse vazio de querer pertencer a algum lado e não encontrar casa em lado nenhum?