Onde o coração vacila – A primeira noite na aldeia do meu marido
— Achas mesmo que vais aguentar isto, Inês? — sussurrei para mim mesma, enquanto o carro do Miguel subia a estrada de terra batida, ladeada por muros de pedra cobertos de musgo. O cheiro a terra molhada entrava pela janela entreaberta e misturava-se com o nervosismo que me apertava o peito. O Miguel olhou-me de lado, tentando sorrir, mas os seus olhos denunciavam a preocupação.
— Vais ver que a minha mãe vai gostar de ti. Só precisa de tempo — disse ele, pousando a mão sobre a minha perna.
Mas eu sabia que não era só isso. Desde que começámos a namorar, a mãe do Miguel nunca escondeu o seu desagrado por ele ter escolhido uma rapariga da cidade. “As lisboetas só querem vida fácil”, ouvi-a dizer uma vez ao telefone, sem saber que eu estava por perto. E agora, ali estava eu, a caminho da casa onde ele cresceu, para passar a minha primeira noite como sua mulher.
A casa era antiga, com paredes grossas e janelas pequenas. O portão rangeu quando o Miguel o empurrou e, do outro lado, vi a Dona Emília parada à porta, braços cruzados e olhar severo. O meu coração batia tão forte que temi que ela ouvisse.
— Boa noite, Dona Emília — tentei sorrir, mas a voz saiu-me trémula.
Ela respondeu com um aceno seco e virou costas. O Miguel apertou-me a mão antes de entrarmos.
O jantar foi um campo minado. A mesa estava posta com toalha de linho e loiça antiga, mas o ambiente era gelado. O pai do Miguel, o senhor António, tentava puxar conversa sobre futebol e colheitas, mas a Dona Emília lançava-me olhares cortantes sempre que eu abria a boca.
— Então, Inês, sabes fazer caldo verde? — perguntou ela de repente.
— Sei… mais ou menos — respondi, sentindo-me uma criança apanhada em falta.
— Aqui não há mais ou menos. Ou se sabe ou não se sabe — atirou ela, sem disfarçar o desdém.
O Miguel tentou intervir:
— Mãe, a Inês cozinha muito bem. E pode aprender as receitas daqui.
— Pois… aprender — murmurou ela, como se fosse impossível.
Depois do jantar, ajudei a arrumar a cozinha. A Dona Emília lavava os tachos com força desnecessária, como se quisesse descarregar neles toda a sua frustração.
— Não penses que isto é Lisboa. Aqui trabalha-se muito. Não há cá empregadas nem supermercados abertos até à meia-noite — disse ela sem me olhar nos olhos.
— Eu sei… vim preparada — respondi baixinho.
Ela riu-se, um riso curto e amargo:
— Preparada… vamos ver.
Subi para o quarto com o Miguel sentindo-me mais pequena do que nunca. Ele tentou animar-me:
— Ela vai habituar-se. Dá-lhe tempo.
Mas eu não queria ser apenas tolerada. Queria ser aceite. Queria sentir que ali também podia ser casa.
A noite foi longa. O colchão era duro e o silêncio da aldeia pesava mais do que qualquer buzina ou sirene de Lisboa. Ouvi passos no corredor e vozes baixas:
— Achas que ela vai ficar? — sussurrou a Dona Emília.
— O Miguel gosta dela… — respondeu o senhor António.
— Gosta… mas isto não é vida para uma menina da cidade.
Senti as lágrimas escorrerem-me pelo rosto. O Miguel abraçou-me sem dizer nada. No escuro, tudo parecia mais difícil.
De manhã cedo, acordei com o som das galinhas e o cheiro a café acabado de fazer. Desci as escadas devagar e encontrei a Dona Emília já na cozinha.
— Dormiste bem? — perguntou ela sem emoção.
— Dormi… obrigada — menti.
Ela empurrou-me um avental:
— Vais ajudar-me com o pão?
Assenti e segui-a até ao forno de lenha no quintal. As mãos dela eram rápidas e seguras; as minhas tremiam ao amassar a farinha. Ela observava cada movimento meu com olhos críticos.
— Tens de pôr força nisso. O pão sente quando não há vontade — disse ela.
Quis responder-lhe que estava a tentar dar tudo de mim, mas calei-me. Senti-me ridícula por não saber fazer algo tão simples para ela. Mas continuei, determinada a não desistir.
Ao almoço, vieram os tios e primos do Miguel. A sala encheu-se de vozes altas e risos abafados quando alguém falava comigo. Senti-me uma peça fora do puzzle.
— Então és tu a lisboeta? — perguntou o primo Rui com um sorriso trocista.
— Sou… — respondi sem saber se devia sorrir também.
— Vais aguentar cá muito tempo? Isto não é só festas e passeios ao rio — disse ele, piscando o olho aos outros.
O Miguel apertou-me a mão por baixo da mesa. Senti raiva por ser tratada como uma intrusa na própria família do meu marido.
À tarde, fui com a Dona Emília ao campo apanhar feijões. O sol queimava-me a pele e as mãos começaram logo a ganhar bolhas. Ela olhou para mim:
— Não tens mãos para isto…
— Posso aprender — respondi com firmeza.
Ela calou-se por um momento e depois disse:
— O Miguel podia ter escolhido qualquer rapariga daqui…
— Mas escolheu-me a mim — disse eu, surpreendendo-me com a minha própria coragem.
Ela parou de apanhar feijões e olhou-me nos olhos pela primeira vez desde que cheguei:
— Vamos ver se mereces esse lugar.
Nesse momento percebi que não era só uma questão de saber fazer pão ou apanhar feijões. Era uma luta pelo direito de pertencer ali, de ser aceite como sou.
À noite, sentei-me sozinha no alpendre da casa. Olhei para as estrelas — tantas mais do que alguma vez vira em Lisboa — e pensei em tudo o que deixara para trás: os cafés com amigas, os passeios à beira Tejo, os pais sempre preocupados com o trânsito e o futuro.
O Miguel sentou-se ao meu lado:
— Arrependida?
Olhei para ele e sorri tristemente:
— Não sei… Sinto-me perdida aqui. Como se nunca fosse suficiente.
Ele abraçou-me:
— Vais encontrar o teu lugar. Eu acredito em ti.
Naquela noite adormeci mais leve. Talvez nunca venha a ser como eles querem. Talvez nunca deixe de ser “a lisboeta”. Mas aprendi que família é feita de lutas diárias e pequenas conquistas. E que às vezes é preciso perder-se para se encontrar um novo caminho.
Pergunto-me: quantos de nós já sentiram este peso de não pertencer? Será que alguma vez conseguimos realmente atravessar as barreiras que nos separam? Gostava de saber as vossas histórias.