Onde Estiveste, Mãe? Uma História de Família, Segredos e Renascimento em Lisboa

— Onde estiveste esta noite, Inês? — A voz do Miguel ecoou pelo corredor escuro do nosso apartamento em Benfica. O relógio marcava quase duas da manhã e eu ainda sentia o cheiro do hospital entranhado na roupa. Hesitei antes de responder, tentando controlar o tremor nas mãos.

— Fui ver a minha mãe, ela não está bem — menti. Na verdade, tinha estado sentada no banco do Jardim da Estrela, a olhar para o vazio, a tentar perceber como é que a minha vida tinha chegado ali. Desde que me mudara para Lisboa para casar com o Miguel, tudo parecia ter desmoronado.

A chamada da minha prima Teresa naquela tarde tinha sido como um murro no estômago. “Inês, tens de vir. O pai está a piorar e a mãe não consegue lidar sozinha.” O meu pai, o homem que me ensinou a andar de bicicleta e depois me virou as costas quando casei com alguém de fora da aldeia. A minha mãe, sempre submissa, sempre a esconder as lágrimas atrás do avental.

Mas agora eu era uma mulher casada, com uma vida em Lisboa. Ou pelo menos era o que eu dizia a mim mesma. A verdade é que desde que me mudara para casa dos pais do Miguel, tudo se tornara um teste à minha resistência. A sogra, Dona Amélia, fazia questão de me lembrar todos os dias que ali era ela quem mandava.

— O jantar está frio — disse ela na primeira noite em que cheguei atrasada do trabalho. — Aqui em casa gostamos de pontualidade.

Miguel tentava apaziguar as coisas, mas eu via nos olhos dele o peso da tradição. Ele era filho único e os pais nunca aceitaram bem a ideia de ele casar com alguém “do Norte”.

As discussões começaram a ser diárias. Pequenas coisas: o lugar dos talheres, a forma como dobrava os lençóis, até o modo como falava ao telefone com a minha irmã. Tudo era motivo para críticas veladas.

Uma noite, ouvi Dona Amélia sussurrar ao marido:

— Ela nunca vai ser como nós.

Senti-me uma intrusa na minha própria casa. O Miguel mudava de assunto sempre que eu tentava falar sobre arranjarmos um espaço só nosso. “Agora não dá, Inês. O meu pai precisa de mim aqui.”

No trabalho, as coisas também não corriam melhor. O chefe olhava-me de lado sempre que pedia para sair mais cedo para ir ao médico com a mãe do Miguel. Os colegas cochichavam quando me viam chegar cansada.

Foi numa dessas noites que descobri a mensagem no telemóvel do Miguel. “Saudades tuas”, dizia uma tal de Patrícia. O coração caiu-me aos pés. Confrontei-o na cozinha, enquanto Dona Amélia lavava a loiça ao lado.

— Quem é a Patrícia?

Ele hesitou antes de responder:

— É só uma colega do trabalho…

Mas vi nos olhos dele que havia mais. Saí de casa sem rumo, acabei por ir ter ao hospital onde o meu pai estava internado. Sentei-me ao lado da cama dele, mas ele dormia profundamente. A minha mãe olhou para mim com olhos cansados.

— Estás magra, filha. Não estás feliz.

Desatei a chorar ali mesmo, sem conseguir explicar-lhe tudo o que sentia: o peso das expectativas, o medo de falhar, a solidão dentro daquela casa cheia de gente.

Os dias seguintes foram um turbilhão. Miguel pediu desculpa, jurou que não havia nada entre ele e a Patrícia. Eu quis acreditar, mas algo dentro de mim tinha mudado.

A gota de água foi quando Dona Amélia me acusou de não saber cuidar da casa.

— Se não sabes fazer um arroz como deve ser, nunca vais conseguir segurar um marido — disse ela num tom frio.

Nessa noite, fechei-me no quarto e liguei à Teresa.

— Não aguento mais — confessei-lhe entre soluços.

Ela ouviu-me em silêncio e depois disse:

— Vem para cá uns dias. Precisas de respirar.

No dia seguinte fiz as malas e apanhei o comboio para o Norte. O Miguel não tentou impedir-me. Talvez também ele estivesse cansado daquela farsa.

Na aldeia, reencontrei os cheiros da infância: o pão quente da padaria da Dona Rosa, o som das crianças a brincar na rua. Mas também reencontrei os olhares desconfiados dos vizinhos e o silêncio pesado do meu pai.

Uma noite, sentei-me à mesa com os meus pais e a Teresa. O meu pai olhou-me nos olhos pela primeira vez em anos.

— Foste embora sem olhar para trás — disse ele num tom duro.

— Fui porque precisava de viver — respondi-lhe com voz trémula.

A Teresa interveio:

— Pai, chega de culpas. A Inês não é responsável pela vossa infelicidade.

O silêncio caiu sobre nós como uma pedra. Mas naquele momento percebi que não podia continuar a viver para agradar aos outros.

Fiquei na aldeia algumas semanas. Ajudei a cuidar do meu pai, conversei longamente com a minha mãe sobre tudo o que nunca tínhamos dito uma à outra. Aos poucos fui recuperando forças.

Quando voltei a Lisboa, já sabia o que tinha de fazer. Procurei um pequeno apartamento perto do trabalho e pedi ao Miguel que conversássemos.

— Não posso continuar assim — disse-lhe com firmeza. — Preciso de espaço para ser eu própria.

Ele tentou convencer-me a voltar para casa dos pais dele, prometeu mudanças, mas eu já não acreditava em promessas vazias.

Mudei-me sozinha pela primeira vez na vida. Os primeiros dias foram difíceis: as noites pareciam intermináveis e o silêncio pesava mais do que qualquer discussão. Mas aos poucos fui aprendendo a gostar da minha própria companhia.

Comecei a sair mais com colegas do trabalho, inscrevi-me num curso de cerâmica e até voltei a escrever no meu velho diário.

A relação com os meus pais melhorou também. O meu pai nunca foi muito de palavras, mas agora ligava-me todas as semanas para saber como estava. A minha mãe enviava-me receitas pelo WhatsApp e ria-se quando eu lhe contava das minhas aventuras na cozinha.

Um dia encontrei o Miguel por acaso na rua Augusta. Ele parecia mais velho, cansado.

— Estás diferente — disse ele.

Sorri-lhe sem rancor:

— Estou melhor assim.

Agora olho para trás e percebo que precisei perder quase tudo para me encontrar. Ainda tenho medo do futuro, mas já não deixo que esse medo me paralise.

Pergunto-me muitas vezes: quantas mulheres vivem presas em vidas que não escolheram? E vocês? Já tiveram coragem de recomeçar do zero?