Onde Estás, Mãe? Uma História de Segredos, Conflitos e Esperança em Lisboa

— Vais mesmo ignorar a minha mensagem outra vez, Sofia? — A voz da minha irmã, Inês, ecoava no telemóvel, carregada de mágoa e impaciência. Eu estava sentada na varanda do pequeno apartamento em Benfica, Lisboa, com o olhar perdido nas luzes da cidade. O Miguel ainda não tinha chegado do trabalho e a casa estava mergulhada num silêncio pesado, só interrompido pelo zumbido dos carros lá em baixo.

Apertei o telemóvel com força. Não sabia o que responder. A última vez que falámos foi há quase dois anos, depois do funeral da nossa mãe. Desde então, cada palavra trocada era uma faca a cortar o pouco que restava da nossa ligação.

— Inês, não sei o que queres que diga… — murmurei, sentindo o nó na garganta apertar. — Não é fácil para mim.

— Não é fácil para ti? Achas que foi fácil para mim ficar sozinha com o pai, a lidar com tudo? — A voz dela subiu de tom. — Tu fugiste. Foste para Lisboa, casaste com o Miguel e deixaste-me aqui a apanhar os cacos.

Fechei os olhos. O peso da culpa era quase físico. Tinha fugido, sim. Quando conheci o Miguel na faculdade, ele era tudo o que eu queria: estabilidade, carinho, um futuro longe das discussões intermináveis lá de casa. Quando ele me pediu em casamento e sugeriu que fôssemos viver para Lisboa, agarrei-me à ideia como quem se agarra a uma tábua de salvação.

Mas Lisboa não era o refúgio que eu imaginava. Logo nos primeiros meses, percebi que a mãe do Miguel, Dona Teresa, tinha ideias muito próprias sobre como devia ser uma nora. “Aqui em casa faz-se assim”, dizia ela sempre que eu tentava cozinhar à minha maneira ou arrumar as coisas no sítio errado. O Miguel tentava mediar, mas acabava sempre por ceder à mãe.

— Sofia, tens de perceber que ela só quer ajudar — dizia ele uma noite, depois de mais uma discussão por causa do jantar.

— Não quero ajuda! Quero respeito! — gritei-lhe, surpreendendo-me com a força da minha própria voz.

Ele olhou para mim como se eu fosse uma criança birrenta. Senti-me sozinha. Mais sozinha do que alguma vez me senti na casa dos meus pais.

Os meses passaram e fui-me apagando aos poucos. Deixei de sair com as poucas amigas que tinha feito em Lisboa. No trabalho, limitava-me a cumprir horários e tarefas sem entusiasmo. Em casa, era uma sombra entre Dona Teresa e Miguel.

Até ao dia em que encontrei uma mensagem no telemóvel do Miguel. Era da Rita, uma colega dele do escritório. “Adorei ontem à noite”, dizia ela, seguido de um emoji de coração. O chão fugiu-me dos pés.

Esperei até ele chegar a casa. Sentei-me na sala escura e esperei pelo som da chave na porta.

— O que se passa? — perguntou ele ao ver-me ali sentada.

Mostrei-lhe o telemóvel sem dizer palavra.

— Não é nada do que estás a pensar — começou ele, mas a voz tremia-lhe.

— Então explica-me — pedi, tentando manter a calma.

Ele hesitou. Depois confessou: tinham saído algumas vezes depois do trabalho. “Nada aconteceu”, jurou ele. Mas eu sabia ler nas entrelinhas. O Miguel não era bom mentiroso.

Nessa noite dormi no sofá. Dona Teresa percebeu logo que algo se passava e fez questão de me lembrar que “os homens são assim mesmo” e que “uma mulher inteligente sabe perdoar”.

Senti raiva. Raiva dele, dela, de mim própria por ter deixado tudo chegar àquele ponto.

Foi nesse estado de espírito que recebi a mensagem da Inês: “O pai está pior. Preciso de ti aqui”.

Voltei ao Porto no fim-de-semana seguinte. A casa onde cresci parecia mais pequena e escura do que nunca. O meu pai estava magro, envelhecido, quase irreconhecível. Inês olhou para mim como quem vê um fantasma.

— Achavas mesmo que podias fugir para sempre? — perguntou ela quando ficámos sozinhas na cozinha.

— Eu não fugi… — tentei justificar-me.

— Foste embora no dia em que a mãe morreu! Deixaste-me sozinha com isto tudo! — gritou ela, apontando para o caos da casa: contas por pagar, roupa por lavar, fotografias antigas espalhadas pela mesa.

Chorei pela primeira vez em meses. Chorei por mim, por ela, pelo pai, pela mãe ausente. Chorei porque percebi que nunca tinha realmente enfrentado nada — só tinha fugido.

Fiquei no Porto duas semanas. Cuidei do meu pai como pude. Falei com Inês todas as noites até adormecermos exaustas no sofá. Aos poucos, fomos reconstruindo alguma coisa entre nós — não era amor ainda, mas era um começo.

Quando voltei a Lisboa, sabia que tinha de tomar uma decisão sobre o meu casamento. O Miguel pediu desculpa mil vezes. Disse que me amava, que queria tentar outra vez. Dona Teresa fez questão de me lembrar que “um casamento é para a vida”.

Mas eu já não era a mesma Sofia que chegou a Lisboa cheia de sonhos e medo de desiludir toda a gente. Pela primeira vez em muito tempo, pensei em mim própria: no que queria, no que precisava para ser feliz.

Numa noite chuvosa de novembro, fiz as malas e saí de casa sem olhar para trás. Fui viver sozinha para um pequeno estúdio em Campo de Ourique. Os primeiros dias foram difíceis — sentia falta do conforto conhecido, mesmo quando esse conforto era feito de dor e silêncio.

Comecei terapia. Voltei a pintar — algo que não fazia desde adolescente. Reaproximei-me da Inês; falávamos todos os dias ao telefone e ela vinha visitar-me sempre que podia.

O Miguel tentou voltar várias vezes. Mandou flores, cartas, mensagens longas cheias de promessas. Mas eu sabia que não podia voltar atrás.

Um ano depois daquela primeira chamada da Inês, estávamos as duas sentadas num café em Lisboa quando ela me disse:

— Nunca pensei perdoar-te… mas agora percebo porque precisavas fugir. Eu também precisava… só não tive coragem.

Abraçámo-nos ali mesmo, entre chávenas vazias e migalhas de bolo.

Hoje olho para trás e vejo tudo com outros olhos: os erros dos meus pais, as minhas fugas, os silêncios entre mim e a Inês… Tudo fez parte do caminho até aqui.

Às vezes pergunto-me: quantas vezes precisamos perder tudo para finalmente nos encontrarmos? E será possível reconstruir uma família feita de pedaços partidos?

E vocês? Já sentiram esse medo de enfrentar o passado? O que fariam no meu lugar?