Onde estás, mãe?

— Mariana, não me venhas com essas perguntas outra vez! — A voz da minha mãe ecoou pela cozinha, cortando o silêncio da manhã como uma faca afiada. Eu estava de pé, junto à janela embaciada pelo vapor do café, a olhar para ela como quem procura respostas num livro fechado há anos.

— Mas mãe, só queria saber se já tomaste os comprimidos — tentei suavizar o tom, mas a irritação dela já tinha tomado conta do ar. Lurdes, a minha mãe, sempre foi mulher de poucas palavras e muitos gestos. Mas nos últimos tempos, nem os gestos restavam. Era como se ela se estivesse a apagar devagarinho, a cada dia um pouco mais.

Lembro-me de quando era pequena e ela me penteava o cabelo antes da escola. Tinha mãos firmes e olhos atentos a cada nó. Agora, as mãos tremem-lhe e os olhos fogem dos meus. Sinto-me a perder a minha mãe enquanto ela ainda está aqui.

O meu pai morreu há três anos. Desde então, a casa ficou maior e mais fria. Eu voltei para cuidar dela, deixando para trás o meu emprego em Lisboa e um namoro que nunca chegou a ser sério. Os meus irmãos, o Rui e a Joana, vivem longe — um em Braga, outra em Londres — e as chamadas deles são sempre apressadas, cheias de promessas vazias: “Para a semana vou aí, mãe.”

— Mariana, não insistas. Já disse que não preciso de ninguém atrás de mim — resmungou ela, afastando o prato do pequeno-almoço quase intocado.

Sentei-me à sua frente, tentando encontrar-lhe o olhar. — Mãe, tens de comer alguma coisa. Não podes ficar assim…

Ela levantou-se bruscamente. — Não sou uma criança! — E saiu da cozinha, deixando-me sozinha com o cheiro do café frio e o peso da impotência.

Os dias passaram assim: eu a tentar cuidar dela, ela a fugir de mim. Às vezes penso que se pudesse voltar atrás faria tudo diferente. Talvez tivesse sido mais paciente quando era adolescente e discutíamos por causa das saídas à noite ou das notas na escola. Talvez tivesse dito mais vezes “gosto de ti”, em vez de esperar que ela adivinhasse.

Uma tarde, ao regressar do supermercado, encontrei-a sentada no sofá da sala, a olhar para fotografias antigas espalhadas pela mesa baixa. Sentei-me ao lado dela em silêncio. Olhou para uma foto do meu pai com um sorriso triste.

— O teu pai fazia sempre questão de jantar connosco à mesa… mesmo quando estava cansado — murmurou ela.

— Eu lembro-me… — respondi baixinho. — Sinto falta dele também.

Ela suspirou fundo. — A casa ficou tão vazia…

Aproximei-me e toquei-lhe na mão. Pela primeira vez em meses, não a afastou.

— Mãe… eu sei que é difícil. Mas estou aqui contigo. Não tens de passar por isto sozinha.

Ela olhou-me nos olhos, finalmente. Vi ali uma tristeza antiga, mas também um pedido de ajuda que nunca tinha tido coragem de fazer.

— Às vezes sinto que já não pertenço aqui… — confessou ela num sussurro quase inaudível.

— Pertences sempre — disse-lhe, apertando-lhe a mão com força.

Nessa noite liguei à Joana. — Ela está pior… não fala com ninguém, mal come… Preciso de ajuda.

A minha irmã suspirou do outro lado do telefone. — Mariana, eu tenho o trabalho… as miúdas… Não é fácil largar tudo.

— Eu também larguei tudo! — gritei sem querer. O silêncio caiu pesado entre nós.

— Desculpa… — murmurou ela por fim. — Eu vou tentar ir aí no próximo mês.

Desliguei com lágrimas nos olhos. Senti-me sozinha como nunca antes.

No dia seguinte, tentei convencer a minha mãe a ir ao centro de saúde. Ela recusou-se terminantemente.

— Não preciso de médicos! Só quero paz! — gritou ela.

— Mas mãe… tu não estás bem! — insisti eu, já sem forças para esconder o desespero.

Ela virou-me as costas e fechou-se no quarto. Fiquei na sala a ouvir o tique-taque do relógio antigo na parede. Cada segundo parecia um lembrete cruel do tempo que nos escapava entre os dedos.

À noite ouvi-a chorar baixinho no quarto. Quis entrar, abraçá-la como fazia quando era criança e tinha pesadelos. Mas fiquei parada à porta, incapaz de dar esse passo.

Os dias seguintes foram iguais: silêncios longos, discussões breves e olhares perdidos. Até que um dia acordei com um barulho estranho na cozinha. Corri e encontrei-a caída no chão, pálida e ofegante.

— Mãe! — gritei em pânico. Liguei para o 112 com as mãos a tremer.

No hospital disseram-me que tinha sido uma quebra de tensão agravada pela má alimentação e pelo isolamento. Fiquei sentada ao lado dela durante horas enquanto dormia ligada às máquinas.

Quando acordou olhou para mim com olhos assustados.

— Mariana… desculpa… — sussurrou ela.

Chorei ali mesmo ao lado dela, sem vergonha nem orgulho. — Não tens de pedir desculpa… só quero que fiques bem.

Depois desse susto, as coisas mudaram devagarinho. Aceitou ir ao médico e começou a tomar os comprimidos certos. A Joana veio finalmente passar uns dias connosco e o Rui ligava todos os domingos sem falta.

Mas o silêncio entre nós nunca desapareceu completamente. Há coisas que ficam por dizer mesmo quando se tem todo o tempo do mundo.

Hoje olho para a minha mãe sentada no jardim ao sol e penso em tudo o que perdemos por orgulho ou medo de mostrar fraqueza. Pergunto-me se algum dia conseguiremos realmente dizer tudo o que sentimos antes que seja tarde demais.

Será que as palavras certas existem? Ou será que só aprendemos a dizê-las quando já não há quem as ouça?