Olhos de uma Irmandade Perdida: Entre a Violência e a Esperança nas Ruas de Lisboa

— Mariana, não te metas onde não és chamada! — O grito do meu pai ecoou pela cozinha, enquanto eu tentava explicar porque tinha ligado à mãe da Inês naquela noite. O cheiro do café queimado misturava-se ao nervosismo que me subia pelo peito. Tinha acabado de ouvir, pelo telefone, a voz trémula da Inês, abafada por soluços e pelo som de algo a partir-se ao fundo. Não consegui ignorar. Não consegui.

A Inês era mais do que uma amiga. Desde pequenas, corríamos juntas pelas ruas do Bairro Alto, ríamos das senhoras que vendiam castanhas na Praça da Figueira e partilhávamos sonhos sentadas nos degraus do prédio dela. Mas, nos últimos meses, ela afastara-se. As mensagens tornaram-se raras, os encontros fugazes. Quando finalmente atendeu o telefone naquela noite, percebi logo que algo estava errado.

— Mariana… — sussurrou ela — Não posso falar agora. Ele está aqui.

O “ele” era o Rui. Nunca gostei dele. Sempre achei que havia algo de sombrio naquele olhar, uma raiva contida por trás dos gestos educados. Mas a Inês apaixonou-se perdidamente. E eu, como amiga, tentei apoiar. Até ao dia em que vi o primeiro hematoma no braço dela.

— Cai das escadas — disse-me ela, desviando o olhar.

A partir daí, tudo mudou. A Inês começou a inventar desculpas para tudo: para as marcas, para os atrasos, para as ausências. E eu comecei a sentir-me impotente. O medo de perder a amiga misturava-se com a raiva de não conseguir ajudá-la.

Naquela noite fatídica, depois do telefonema, corri até ao prédio dela. O elevador estava avariado — como sempre — e subi os cinco andares a correr. Bati à porta com força, mas ninguém respondeu. Ouvi gritos abafados lá dentro. Chamei a polícia.

Quando finalmente abriram a porta, vi a Inês sentada no chão da sala, os olhos inchados de tanto chorar. O Rui estava de pé, com as mãos nos bolsos e um sorriso cínico nos lábios. A polícia levou-o para prestar declarações, mas ele saiu no dia seguinte. A Inês recusou-se a apresentar queixa.

— Mariana, não percebes? Se eu fizer isso ele acaba comigo… ou pior.

Senti-me traída. Senti raiva dela por não aceitar ajuda, raiva de mim por não conseguir fazer mais. A partir desse dia, afastámo-nos. Eu mergulhei nos estudos e no trabalho no hospital de Santa Maria; ela desapareceu das redes sociais, mudou de número e de casa.

Os anos passaram. Lisboa mudou — prédios novos ergueram-se onde antes havia lojas antigas, os turistas invadiram as ruas estreitas de Alfama e eu aprendi a viver com um vazio constante no peito. Até ao dia em que vi a Inês no autocarro 728.

Estava sentada junto à janela, com o olhar perdido no Tejo. O cabelo curto escondia parte do rosto, mas reconheci-a imediatamente. Sentei-me ao lado dela sem pensar.

— Inês?

Ela olhou para mim como se tivesse visto um fantasma.

— Mariana… — murmurou — O que fazes aqui?

— Podia perguntar-te o mesmo.

O silêncio entre nós era pesado. O autocarro avançava devagar pela Avenida Infante Santo, enquanto eu tentava encontrar palavras para anos de ausência.

— Precisas de ajuda? — arrisquei.

Ela sorriu tristemente.

— Agora já é tarde demais para isso.

Mas não era tarde demais. Nos dias seguintes procurei-a em todos os sítios possíveis: cafés onde costumávamos ir, o mercado da Ribeira onde comprávamos fruta ao senhor António, até na igreja de São Domingos onde ela ia acender velas pela mãe falecida. Finalmente encontrei-a num pequeno apartamento em Arroios, partilhado com outras duas mulheres.

— Porque insistes? — perguntou-me ela quando bati à porta.

— Porque nunca deixaste de ser minha amiga.

Aos poucos, entre chávenas de chá e conversas longas à janela, a Inês começou a contar-me tudo: as noites em claro com medo do Rui voltar; as ameaças; o isolamento; o sentimento de culpa por não conseguir sair daquela relação tóxica; o medo do julgamento da família — “Se fosses mais forte isto não te acontecia”, diziam-lhe os irmãos; “Aguenta pelo teu filho”, insistia a avó.

A família dela nunca quis ver o que se passava realmente. Para eles era mais fácil culpar a vítima do que enfrentar o agressor. E eu percebi que parte da minha raiva vinha daí: da impotência perante uma sociedade que prefere fechar os olhos.

Comecei a acompanhá-la às consultas no centro de apoio à vítima; ajudei-a a encontrar trabalho numa pastelaria; estive ao lado dela quando finalmente apresentou queixa contra o Rui — desta vez com provas e testemunhas. Não foi fácil: houve recaídas, noites em que ela me ligava a chorar porque sentia falta dele ou porque tinha medo do futuro.

Mas aos poucos vi renascer nela aquela luz antiga: o sorriso tímido quando falava do filho; o entusiasmo ao planear uma viagem à Serra da Estrela; a coragem de enfrentar os próprios fantasmas.

A minha família nunca entendeu porque me envolvi tanto.

— Mariana, estás a desperdiçar a tua vida por alguém que nem quer ser ajudada! — dizia-me a minha mãe.

Mas eu sabia que não era verdade. Sabia que às vezes basta uma pessoa acreditar em nós para conseguirmos recomeçar.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas Inês existem em Lisboa? Quantas vivem presas ao medo e à vergonha? Quantas precisam apenas de uma mão estendida?

E vocês? Até onde iriam por uma amiga? Até onde vai o nosso dever — e onde começa o delas? Talvez nunca haja respostas certas… Mas se esta história servir para alguém abrir os olhos ou estender a mão, já valeu a pena.