Olhos de Irmã Perdida: Entre a Violência e a Esperança nas Ruas de Lisboa

— Mariana, não te metas onde não és chamada! — gritou a minha mãe da cozinha, enquanto eu tentava, pela centésima vez, ligar à Inês. O telefone tocava em vão, cada toque um prego na minha ansiedade. O cheiro do arroz de pato misturava-se ao cheiro amargo do medo que me subia à garganta.

Lembro-me como se fosse ontem: eu e a Inês sentadas no muro da escola Secundária de Camões, partilhando sonhos de fugir para o Porto, abrir uma livraria, viver sem medo. Mas o medo sempre foi mais rápido do que nós. O pai dela, o senhor António, era conhecido no bairro por ser bruto — mas ninguém falava disso abertamente. Só se ouviam portas a bater e gritos abafados pelas paredes finas dos prédios da Graça.

A última vez que vi a Inês antes do silêncio foi numa tarde húmida de novembro. Ela apareceu com um olho negro, mas sorriu como se nada fosse. “Caí nas escadas”, disse-me. Eu quis acreditar. Quis tanto acreditar que me tornei cúmplice do silêncio.

Os anos passaram. Fui para a faculdade de Letras, tentei esquecer. Mas cada vez que via uma rapariga com medo nos olhos no metro do Martim Moniz, lembrava-me da Inês. O peso da culpa era um casaco que nunca tirava.

Um dia, já adulta, estava no autocarro 28E quando ouvi uma gargalhada familiar. Olhei para trás e vi-a: Inês, mais magra, cabelo cortado curto, mas era ela. O coração disparou. Hesitei — devia abordá-la? E se ela não quisesse saber de mim?

Desci na mesma paragem que ela, segui-a até ao mercado da Ribeira. Ela vendia flores num pequeno banco improvisado. Aproximei-me devagar.

— Inês?

Ela olhou-me como se visse um fantasma. Os olhos dela — aqueles olhos castanhos que conheciam todos os meus segredos — estavam diferentes: cansados, mas vivos.

— Mariana? — sussurrou.

Ficámos ali, paradas no meio do mercado, rodeadas pelo cheiro das flores e dos peixes frescos, sem saber o que dizer. Finalmente, ela sorriu — um sorriso tímido, mas verdadeiro.

— Pensei que nunca mais te ia ver — disse ela.

— Eu também — respondi, sentindo as lágrimas ameaçarem cair.

Sentámo-nos num banco de pedra à saída do mercado. Ela contou-me tudo: como o pai tinha sido preso depois de uma denúncia anónima (não minha), como a mãe fugira para casa de uma tia em Setúbal, como ela própria passara noites em abrigos para mulheres vítimas de violência.

— E tu? Porque nunca disseste nada? — perguntou-me ela, com uma dor antiga na voz.

Engoli em seco. Como explicar o medo? O medo de não ser ouvida, de ser rejeitada pela família dela, pelo bairro inteiro? Como explicar o peso da impotência?

— Tentei… mas não soube como — murmurei.

Ela pousou a mão na minha. — Não te culpes. Cada um faz o que pode com o que tem.

A partir desse dia, voltei a fazer parte da vida da Inês. Ajudava-a no mercado aos fins-de-semana; às vezes dormia lá em casa quando os pesadelos eram demais para ela aguentar sozinha. A família dela nunca mais falou comigo — diziam que eu era má influência por ter ido para a faculdade e “esquecido as raízes”.

Houve noites em que discutimos ferozmente:

— Porque insistes em ajudar-me? Não vês que não tenho salvação? — gritava ela.

— Porque acredito em ti! Porque ninguém é só vítima ou só culpado! — respondia eu, com raiva e amor misturados.

Aos poucos, Inês começou a sorrir mais. Inscreveu-se num curso de jardinagem financiado pela Junta de Freguesia. Um dia trouxe para casa um vaso com violetas africanas e disse:

— Estas flores sobrevivem mesmo quando ninguém acredita nelas.

Eu sabia que ela falava dela própria.

Mas nem tudo foi fácil. A mãe dela recusava-se a falar sobre o passado; o irmão mais novo entrou numa espiral de drogas e pequenos furtos. O bairro continuava a sussurrar histórias pelas esquinas — “aquela família é amaldiçoada”, diziam.

Um domingo à tarde, durante um almoço em minha casa, a minha mãe olhou para Inês e disse:

— Sabes, sempre achei que eras má companhia para a Mariana… Mas vejo agora que ambas precisavam uma da outra.

Inês sorriu-lhe com gratidão silenciosa. Eu senti um nó na garganta desatar-se finalmente.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas Inês existem nas ruas de Lisboa? Quantas amizades se perdem porque temos medo de agir? Será que fiz tudo o que podia? Ou será que ainda há mais que posso fazer?

E tu? Já deixaste alguém para trás por medo ou vergonha? Até onde vai a nossa responsabilidade uns pelos outros?