“O vizinho pediu-me para cuidar da mãe dele”: Como reencontrei o sentido da vida na reforma
— Maria do Céu, desculpe incomodar, mas preciso mesmo da sua ajuda. — A voz do Rui, o meu vizinho do terceiro esquerdo, tremia mais do que o habitual. Era uma manhã fria de janeiro, e eu estava a tentar convencer-me de que aquele silêncio na casa era finalmente paz, não solidão. — A minha mãe… ela está pior. Não posso faltar ao trabalho outra vez. Será que podia ficar com ela hoje?
Fiquei ali, parada à porta, com a chávena de café a arrefecer-me nas mãos. O cheiro do café misturava-se com o perfume antigo das cortinas, e por um momento hesitei. Tinha acabado de me reformar há dois meses. Depois de quarenta anos como professora primária em Almada, sonhava com dias de passeios à beira-rio, tardes com a minha neta Leonor e noites sem despertador. Mas ali estava eu, a ser puxada de volta para uma rotina que não era minha.
— Claro, Rui. Não se preocupe. — A resposta saiu antes de eu pensar bem. Talvez porque sempre fui assim: incapaz de dizer não quando alguém precisa.
A mãe do Rui, Dona Emília, era uma mulher pequena, de olhos muito vivos apesar da doença. Tinha Alzheimer avançado e passava os dias entre memórias partidas e silêncios longos. Quando entrei no apartamento dela, senti logo o peso do tempo: fotografias antigas nas paredes, móveis escuros, um rádio sempre ligado baixinho na Antena 1.
— Quem é você? — perguntou-me ela, desconfiada.
— Sou a Maria do Céu, vizinha do seu filho Rui. Vim fazer-lhe companhia hoje.
Ela olhou-me como se tentasse decifrar um enigma antigo. Sentei-me ao lado dela e comecei a falar do tempo, das flores na varanda, das notícias do dia. Aos poucos, foi-se acalmando. Mas percebi logo que aquele não seria um dia fácil.
As horas arrastaram-se entre pequenas tarefas: preparar o almoço (ela recusou comer quase tudo), ajudá-la a ir à casa de banho (ela chorou como uma criança), tentar distraí-la com novelas antigas (ela adormeceu a meio). Quando Rui chegou ao fim da tarde, eu estava exausta.
— Não sei como lhe agradecer, Maria do Céu. — Ele parecia sinceramente aliviado.
— Não foi nada… — menti. Por dentro sentia-me esmagada pelo peso daquela responsabilidade.
Nos dias seguintes, o pedido repetiu-se. Primeiro uma vez por semana, depois duas, depois quase todos os dias. A minha filha Ana começou a notar a minha ausência.
— Mãe, não te esqueças que prometeste vir buscar a Leonor à escola esta sexta! — reclamou ela ao telefone.
— Eu sei, filha… mas a Dona Emília está mesmo muito mal. O Rui não tem mais ninguém.
— E tu? Quem cuida de ti?
A pergunta ficou a ecoar-me na cabeça durante dias. Quem cuida de mim? Desde que o meu marido morreu há cinco anos, tenho tentado preencher os vazios com pequenas rotinas: jardinagem na varanda, voluntariado na paróquia, tardes com a Leonor. Mas agora sentia-me presa entre dois mundos: o da minha família e o desta estranha obrigação que me caíra no colo.
Uma tarde, enquanto ajudava Dona Emília a vestir-se, ela agarrou-me a mão com força inesperada.
— Não me deixe sozinha… — murmurou ela, os olhos cheios de lágrimas.
Senti um nó na garganta. Lembrei-me da minha própria mãe nos últimos meses de vida: também ela tinha medo da solidão, também ela se agarrava às minhas mãos como se fossem âncoras num mar revolto.
Comecei a passar mais tempo com Dona Emília do que com qualquer outra pessoa. Aprendi os seus gostos (adorava bolachas Maria molhadas em chá), os seus medos (o escuro do corredor), as suas memórias partidas (falava muitas vezes de um filho chamado António que nunca existiu). Às vezes zangava-se comigo sem razão; outras vezes ria-se de coisas que só ela entendia.
A minha filha Ana começou a ficar impaciente.
— Mãe, tu não és enfermeira! Não podes carregar o mundo às costas!
— Mas se não for eu… quem será?
— E nós? E a Leonor? Não tens saudades?
Tinha saudades. Muitas. Mas sentia também uma estranha obrigação para com aquela mulher frágil e perdida no tempo. Talvez porque via nela todos os idosos esquecidos que conheci ao longo dos anos; talvez porque sentia que ainda tinha algo para dar ao mundo.
Uma noite, depois de um dia particularmente difícil (Dona Emília tinha caído na casa de banho e eu tive de chamar o INEM), sentei-me sozinha na cozinha e chorei como há muito não chorava. Senti-me velha, cansada e inútil. Perguntei-me se estava a fazer alguma diferença ou apenas a adiar o inevitável.
No dia seguinte, Rui apareceu mais cedo em casa.
— Maria do Céu… preciso falar consigo.
Pensei logo no pior.
— A minha irmã veio de França. Vai ficar connosco umas semanas para ajudar com a mãe. Não quero abusar mais da sua bondade…
Senti um alívio imediato misturado com uma tristeza inesperada. Tinha-me habituado à rotina com Dona Emília; sentia que fazia parte daquela família improvisada.
Na semana seguinte tentei voltar à minha vida “normal”: fui buscar a Leonor à escola, fiz bolos para as vizinhas, voltei ao grupo de leitura da biblioteca municipal. Mas sentia sempre um vazio estranho ao fim do dia.
Um sábado à tarde recebi uma mensagem do Rui:
“A minha mãe pergunta por si todos os dias. Quer vir tomar um chá connosco?”
Fui sem hesitar. Quando entrei no apartamento dela, Dona Emília sorriu-me como se me reconhecesse finalmente.
— Maria do Céu… — disse ela baixinho — é tão bom vê-la.
Sentei-me ao lado dela e ficámos ali em silêncio durante muito tempo. Pela primeira vez em meses senti uma paz verdadeira: não porque tudo estivesse resolvido, mas porque percebi que tinha feito o melhor que sabia com aquilo que me foi pedido.
Agora olho para trás e pergunto-me: quantas vezes fugimos das responsabilidades porque achamos que já demos tudo? E quantas oportunidades perdemos de fazer a diferença — mesmo quando já ninguém espera nada de nós?
Será que envelhecer é apenas perder coisas… ou também ganhar novas formas de amar?