O Visitante Inesperado do Borda do Monte
— Quem és tu? — perguntei, a voz trémula, enquanto apertava a mangueira com força. O sol já se punha atrás do monte, tingindo o céu de laranja e púrpura, mas o frio que senti não vinha do ar da serra. O homem à minha frente, sujo, com a barba por fazer e olhos fundos, não respondeu de imediato. Limitou-se a olhar-me, como se me conhecesse de algum lado.
O silêncio pesou entre nós. O cheiro a terra molhada misturava-se com o odor estranho que vinha dele — suor, medo, talvez desespero. O meu cão, o Figo, rosnava baixinho junto ao portão.
— Preciso de ajuda — disse ele finalmente, a voz rouca. — Não tenho para onde ir.
Por um instante, hesitei. Lembrei-me das histórias que o meu pai contava sobre forasteiros que apareciam do nada, vindos do monte. Histórias de gente perdida, de ladrões, de fantasmas até. Mas havia algo naquele homem que me fez baixar a guarda — talvez fosse o olhar cansado, ou a forma como segurava o braço esquerdo, como se estivesse ferido.
— O que te aconteceu? — perguntei, tentando manter a distância.
Ele olhou para trás, para o trilho que descia do monte, e depois para mim.
— Não posso contar tudo agora. Só preciso de água… e talvez um pouco de comida.
O meu instinto dizia-me para fechar o portão e chamar a GNR. Mas havia algo mais forte: uma curiosidade misturada com compaixão. Talvez porque eu própria sabia o que era sentir-me perdida.
Levei-o até ao alpendre. Figo não tirava os olhos dele. Dei-lhe água e pão. Ele comeu devagar, como quem não via comida há dias.
— Como te chamas? — arrisquei.
— Miguel — respondeu, depois de engolir um pedaço de pão duro.
O nome ecoou na minha cabeça. Miguel era também o nome do meu irmão mais velho, aquele que desaparecera há vinte anos, numa noite de tempestade. Mas este homem não podia ser ele — era demasiado novo, demasiado diferente.
— E tu? — perguntou ele.
— Chamo-me Teresa.
O silêncio voltou a instalar-se. Ouvia-se apenas o chilrear dos pássaros e o som distante de um carro na estrada nacional.
— Porque vieste pelo monte? — insisti.
Ele hesitou. Olhou-me nos olhos, como se procurasse uma resposta dentro de mim.
— Estou a fugir — disse finalmente. — Fiz coisas das quais não me orgulho. Mas não sou mau homem.
Aquelas palavras ficaram a ecoar-me na cabeça durante dias. Miguel ficou no anexo naquela noite. Disse-lhe que podia dormir ali, mas tranquei a porta da casa e dormi mal, acordando a cada barulho vindo do quintal.
No dia seguinte, a minha mãe apareceu cedo para trazer ovos frescos e couves da horta dela. Mal viu Miguel no anexo, franziu o sobrolho.
— Quem é aquele? — perguntou em voz baixa.
— Um homem perdido no monte — respondi, tentando soar casual.
Ela não acreditou. As mães nunca acreditam quando mentimos.
— Teresa, não te metas em sarilhos. Lembras-te do que aconteceu ao teu pai por confiar demais?
O nome do meu pai era como uma ferida aberta. Ele tinha sido enganado por um vizinho há anos atrás — perdeu metade das terras por causa disso. Desde então, a confiança era moeda rara na nossa família.
Mas havia algo em Miguel que me fazia querer ajudá-lo. Talvez fosse o modo como olhava para as árvores do quintal, como se procurasse abrigo nelas; ou talvez fosse porque eu própria sentia falta de alguém em quem confiar.
Naquela tarde, fui ao anexo levar-lhe sopa quente. Encontrei-o sentado no chão, com um caderno velho nas mãos.
— O que escreves aí? — perguntei.
Ele fechou o caderno rapidamente.
— Só memórias — murmurou.
Sentei-me ao lado dele. O cheiro da sopa misturava-se com o cheiro da madeira húmida do anexo.
— Sabes… também eu tenho memórias que preferia esquecer — confessei.
Miguel olhou-me com atenção pela primeira vez.
— Às vezes fugir não resolve nada — disse ele baixinho.
Ficámos ali em silêncio durante algum tempo. Depois ele contou-me parte da sua história: tinha fugido de casa aos dezassete anos por causa do pai violento; vivera nas ruas do Porto; metera-se em sarilhos; agora tentava recomeçar longe de tudo e todos.
A história dele fez-me lembrar o meu irmão desaparecido. Sempre pensei que ele tivesse fugido por minha causa — tínhamos discutido naquela noite fatídica porque eu contei à mãe que ele roubara dinheiro da carteira dela. Nunca mais voltou.
Nessa noite sonhei com o meu irmão Miguel: via-o a correr pelo monte, perdido na neblina, chamando por mim. Acordei com lágrimas nos olhos e uma sensação estranha no peito.
Os dias passaram e Miguel foi ficando. Ajudava-me na horta, consertou a vedação partida pelo temporal do inverno passado e até ensinou Figo a dar a pata. A minha mãe continuava desconfiada e os vizinhos começaram a cochichar quando passavam pelo portão.
Uma tarde, enquanto apanhávamos batatas juntos, ouvi vozes vindas da estrada. Dois homens aproximavam-se pelo caminho de terra batida: eram da GNR.
— Boa tarde — disse um deles, olhando diretamente para Miguel. — Recebemos uma denúncia sobre um forasteiro a viver aqui.
O coração bateu-me descompassado. Olhei para Miguel; ele estava pálido como cal.
— É meu primo — menti rapidamente. — Veio ajudar-me na quinta enquanto recupera de uma operação.
Os guardas trocaram olhares desconfiados.
— Tem documentos? — perguntou o outro.
Miguel abanou a cabeça.
— Perdi tudo quando fui assaltado no Porto — improvisou ele.
Os guardas anotaram algo num bloco e disseram que voltariam dentro de dias para verificar tudo. Quando se foram embora, Miguel caiu sentado no chão, exausto.
— Desculpa ter-te metido nisto — murmurou ele.
Sentei-me ao lado dele e toquei-lhe no ombro.
— Não és o único com fantasmas no passado — disse-lhe baixinho.
Nessa noite jantámos juntos pela primeira vez dentro de casa. A minha mãe veio também, contrariada mas curiosa. Durante o jantar falou-se pouco; só se ouviam os talheres a bater nos pratos e o vento lá fora contra as janelas antigas da casa dos meus avós.
Depois do jantar, Miguel levantou-se e foi buscar o caderno velho ao anexo. Sentou-se à mesa e abriu-o devagar.
— Quero mostrar-vos uma coisa — disse ele, olhando para mim e para a minha mãe.
No caderno havia desenhos: árvores do monte, casas antigas da aldeia… e retratos de pessoas. Um deles era assustadoramente parecido com o meu irmão desaparecido.
— Quem é este? — perguntei, apontando para o desenho.
Miguel hesitou antes de responder:
— É alguém que conheci há muitos anos… chamava-se Miguel também. Falava muito de uma irmã chamada Teresa…
O mundo pareceu parar naquele instante. A minha mãe levou as mãos à boca; eu senti as lágrimas escorrerem sem conseguir controlar.
Miguel contou-nos então que conhecera o meu irmão numa noite fria no Porto; tinham partilhado um abrigo improvisado junto à estação de Campanhã; tinham falado das suas famílias perdidas e dos erros cometidos; tinham prometido recomeçar juntos… mas numa noite o meu irmão desaparecera sem deixar rasto após uma briga violenta com outros sem-abrigo.
Ouvindo aquilo percebi que nunca soubera realmente o que acontecera ao meu irmão — só tinha ficado com culpas e perguntas sem resposta durante vinte anos. Agora tinha finalmente uma peça do puzzle: ele tinha tentado recomeçar mas não conseguira fugir dos fantasmas dele próprio.
Miguel ficou connosco mais umas semanas até conseguir trabalho numa quinta vizinha. Quando partiu deixou-me o caderno velho com os desenhos e uma carta onde dizia: “Obrigado por me deixares acreditar outra vez nas pessoas”.
Hoje olho para o monte com outros olhos: já não é só paisagem ou ameaça; é memória viva dos que partiram e dos que ficaram à procura de redenção. Pergunto-me muitas vezes: quantos fantasmas carregamos sem saber? E será possível perdoar-nos pelos erros do passado?