O Visitante Inesperado à Beira do Pinhal
— Quem está aí? — perguntei, com a voz trémula, enquanto o som de passos pesados esmagava as folhas secas junto ao muro do quintal. O sol já se punha atrás do pinhal, lançando sombras compridas sobre a terra húmida. O cheiro a resina misturava-se com o das hortênsias que acabara de regar. Nunca gostei de surpresas, muito menos desde que o meu pai desaparecera há três anos sem deixar rasto.
A figura parou à beira do portão enferrujado. Era um homem alto, de barba por fazer e olhos fundos, vestido com uma gabardina gasta. O coração bateu-me mais forte — não o reconhecia, mas havia algo de familiar na postura, no jeito como olhava para a casa.
— Boa tarde — disse ele, a voz rouca. — Procuro a dona Maria do Carmo.
— A minha mãe? Ela… ela não está — respondi, tentando esconder o nervosismo. — Posso ajudar?
Ele hesitou, olhando para trás, como se temesse ser seguido. — Talvez possa. Preciso de falar consigo. É sobre o seu pai.
O nome caiu como uma pedra no poço fundo da minha memória. O meu pai, António, desaparecera numa noite de tempestade, deixando apenas a camioneta encostada ao portão e um bilhete enigmático: “Perdoem-me.” Desde então, a minha mãe fechara-se em silêncio e eu passara a cuidar da casa e dela, tentando manter as aparências perante os vizinhos sempre prontos a comentar.
— Entre — disse, quase num sussurro, abrindo o portão. O estranho entrou devagar, olhando em redor como se procurasse armadilhas.
Sentámo-nos à mesa da cozinha. O cheiro a café velho pairava no ar. Ele pousou um envelope castanho à minha frente.
— O seu pai pediu-me para lhe entregar isto… se algum dia eu voltasse a passar por aqui.
As mãos tremiam-me quando abri o envelope. Lá dentro estava uma carta escrita com a letra apressada do meu pai e uma fotografia antiga: ele e outro homem junto ao pinhal, sorridentes, muito antes de tudo desabar.
— Quem é você? — perguntei, sentindo as lágrimas ameaçarem cair.
Ele baixou os olhos. — Chamo-me Joaquim. Fui amigo do seu pai… e também o traí.
O silêncio caiu pesado entre nós. Lá fora, ouviam-se os gritos das crianças da vizinha e o latido distante de um cão. Joaquim começou a contar uma história que me gelou o sangue: negócios obscuros com madeireiros ilegais, dívidas acumuladas e ameaças veladas à nossa família. O desaparecimento do meu pai não fora um acto de cobardia, mas uma tentativa desesperada de nos proteger.
— Ele nunca quis envolver-vos — disse Joaquim, os olhos marejados. — Mas quando percebeu que já não havia saída… preferiu desaparecer.
A raiva misturou-se com a tristeza. Lembrei-me das noites em que ouvi a minha mãe chorar baixinho no quarto ao lado, das perguntas sem resposta, dos olhares desconfiados dos vizinhos na missa de domingo.
— Porque só agora? — perguntei, quase gritando. — Porque não veio antes?
Joaquim encolheu os ombros. — Tive medo. E vergonha. Mas agora eles voltaram… e acho que estão à procura de si.
O medo instalou-se como uma sombra fria no peito. Olhei para a janela: o pinhal parecia mais escuro do que nunca.
Nessa noite, esperei que a minha mãe adormecesse para reler a carta do meu pai. “Filha, se leres isto é porque já não posso voltar. Perdoa-me por tudo o que te escondi. Protege a tua mãe e nunca confies em quem aparece sem avisar.” As palavras ardiam-me na pele.
No dia seguinte, acordei com o som de vozes no quintal. Dois homens altos, vestidos de preto, falavam com Joaquim junto ao portão. Corri para fora.
— O que querem? — perguntei, tentando soar firme.
Um deles sorriu friamente. — Só queremos conversar sobre o senhor António…
Joaquim pôs-se à minha frente. — Ela não sabe de nada! Deixem-na em paz!
A tensão era palpável. Senti o olhar dos vizinhos por detrás das cortinas e percebi que já nada seria como antes.
Os dias seguintes foram um turbilhão: telefonemas anónimos durante a noite, cartas ameaçadoras deixadas na caixa do correio, sussurros na aldeia sobre “a filha do António” e os seus segredos. A minha mãe fechou-se ainda mais no seu mundo silencioso; eu sentia-me cada vez mais sozinha e encurralada.
Uma tarde, ao regressar do mercado, encontrei a porta da casa entreaberta. Entrei devagarinho, o coração aos pulos.
— Mãe? — chamei.
Nenhuma resposta. Subi as escadas devagar e encontrei-a sentada na cama, com o olhar perdido na janela.
— Eles vieram cá — murmurou ela, sem me olhar nos olhos. — Disseram que se não lhes dermos o que querem…
Abracei-a com força. Pela primeira vez em anos, senti-a tremer nos meus braços como uma criança assustada.
Nessa noite decidi que não podia continuar assim. Liguei ao Joaquim e pedi-lhe ajuda para encontrar provas da inocência do meu pai ou pelo menos algo que nos permitisse negociar com aqueles homens.
Durante dias vasculhámos papéis antigos, contas esquecidas e até as ferramentas escondidas no barracão do quintal. Foi lá que encontrámos uma caixa metálica enterrada sob o soalho podre: dentro estavam documentos que provavam o envolvimento dos madeireiros ilegais e cartas ameaçadoras dirigidas ao meu pai.
Com esses papéis na mão fomos à GNR local. O sargento Costa ouviu-nos com cepticismo mas prometeu investigar.
As semanas seguintes foram um inferno: os homens de preto desapareceram tão subitamente quanto tinham surgido; os vizinhos começaram a evitar-nos ainda mais; a minha mãe adoeceu de preocupação.
Um dia recebi uma chamada do sargento Costa: tinham detido dois suspeitos ligados aos madeireiros ilegais e estavam a investigar outros cúmplices na aldeia.
Senti um alívio misturado com tristeza: nada traria o meu pai de volta nem apagaria os anos de medo e silêncio.
Na missa seguinte sentei-me ao lado da minha mãe em silêncio; sentia os olhares pesados dos vizinhos mas já não me importava tanto.
À saída da igreja, Joaquim aproximou-se e apertou-me a mão com força.
— O seu pai teria orgulho em si — disse ele baixinho.
Olhei para o pinhal ao longe e perguntei-me: quantos segredos ainda estarão enterrados sob aquelas árvores? E quantas famílias vivem presas ao medo e ao silêncio?
Será que algum dia conseguiremos mesmo libertar-nos do passado?