O Verão em que Aprendi a Dizer Não: Entre o Lago e os Laços de Sangue
— Outra vez, Mariana? Vais mesmo deixar a tua mãe falar assim contigo? — A voz do Miguel ecoou pela cozinha, enquanto eu tentava disfarçar as lágrimas que ameaçavam cair. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o aroma das torradas queimadas, e o relógio marcava apenas sete da manhã. Lá fora, o sol nascia sobre o Lago Azul, mas dentro de casa o ambiente era tudo menos sereno.
— Ela só quer ajudar… — murmurei, mais para mim do que para ele. Mas a verdade é que já não sabia se era ajuda ou controlo.
Quando decidimos trocar Lisboa pela pequena aldeia de Vale Sereno, à beira do Lago Azul, pensei que finalmente teria paz. O Miguel sempre sonhou com uma horta, eu com silêncio e espaço para respirar. Comprámos uma casinha antiga, pintada de branco, com janelas azuis e um jardim selvagem onde cresciam malmequeres e alfazema. O primeiro mês foi um sonho: acordávamos cedo, nadávamos no lago, fazíamos piqueniques à sombra dos salgueiros. Parecia que tínhamos encontrado o nosso lugar no mundo.
Mas bastou o verão chegar para tudo mudar.
A minha mãe foi a primeira. Chegou com malas e sacos de compras, dizendo que vinha só passar um fim de semana. Ficou duas semanas. Todos os dias tinha uma opinião sobre tudo: “Mariana, não sabes cozinhar peixe como deve ser”, “Miguel, devias plantar batatas em vez de tomates”, “Esta casa precisa de uma limpeza a sério”. Eu sorria e assentia, tentando ignorar o nó no estômago.
Depois vieram os meus tios de Setúbal. “Que maravilha viver aqui!”, exclamavam, enquanto se instalavam na sala de hóspedes sem sequer perguntar se podiam ficar. Os meus primos corriam pelo jardim, arrancando flores e assustando as galinhas. O Miguel começou a evitar vir para casa cedo; eu sentia-me uma estranha na minha própria vida.
Uma noite, depois de todos se deitarem, sentei-me à beira do lago. O silêncio era cortado apenas pelo coaxar das rãs e pelo murmúrio das árvores. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim: por que é que nunca conseguia dizer não? Por que é que todos achavam que podiam invadir o nosso espaço?
No dia seguinte, tentei falar com a minha mãe.
— Mãe, eu e o Miguel precisamos de algum tempo sozinhos…
Ela olhou para mim como se eu tivesse dito a maior heresia do mundo.
— Mariana, és tão ingrata! Só quero ajudar. Se não fosse por mim, nem sabias como se faz um arroz de polvo!
Fiquei sem palavras. O Miguel apertou-me a mão por baixo da mesa, mas eu sentia-me cada vez mais pequena.
As semanas passaram e as visitas continuaram: primos afastados, amigos dos meus pais, vizinhos curiosos. A nossa casa tornou-se uma pensão improvisada. Eu já nem sabia onde estavam as minhas próprias coisas; o Miguel começou a dormir no sofá porque o quarto estava ocupado pelos meus tios.
Uma tarde, depois de mais uma discussão sobre quem ia usar a máquina de lavar primeiro, fechei-me na casa de banho e chorei até não ter mais lágrimas. Olhei-me ao espelho: olhos inchados, cabelo desgrenhado, um cansaço profundo gravado no rosto. Onde estava a Mariana que sonhava com liberdade?
Nessa noite, o Miguel sentou-se ao meu lado na varanda.
— Isto não pode continuar — disse ele suavemente. — Eu amo-te, mas preciso de ti aqui comigo. Não com toda esta gente à nossa volta.
Senti um aperto no peito. Sabia que ele tinha razão. Mas como enfrentar a minha família?
No dia seguinte, acordei cedo e preparei o pequeno-almoço para todos. Quando estavam todos sentados à mesa — a minha mãe a dar ordens, os tios a discutir futebol, os primos a fazer barulho — levantei-me e bati com a mão na mesa.
— Chega! — gritei. O silêncio caiu como uma bomba.
— Esta é a nossa casa. Eu e o Miguel viemos para aqui para termos paz e começarmos uma vida juntos. Gosto muito de vocês, mas preciso que respeitem o nosso espaço. A partir de agora, as visitas têm de ser combinadas com antecedência e não podem ficar mais do que três dias.
A minha mãe ficou vermelha como um tomate.
— Mariana! Como te atreves?
— Atrevo-me porque preciso de viver — respondi, com a voz a tremer mas firme.
Os meus tios murmuraram qualquer coisa sobre falta de hospitalidade; os primos olharam para mim como se eu fosse um monstro. Mas o Miguel sorriu-me pela primeira vez em semanas.
Nos dias seguintes, houve silêncios constrangedores e olhares magoados. A minha mãe fez as malas em silêncio; os tios foram embora sem se despedirem direito. Fiquei sozinha na cozinha, sentindo-me culpada mas também estranhamente leve.
O verão passou devagarinho depois disso. Eu e o Miguel voltámos aos nossos passeios pelo lago, às tardes preguiçosas no jardim. Comecei a cuidar de mim outra vez: li livros, pintei quadros, plantei girassóis. A culpa ainda me visitava às vezes — especialmente quando recebia mensagens frias da minha mãe — mas aprendi a conviver com ela.
Um dia, sentei-me à beira do lago ao pôr-do-sol e pensei em tudo o que tinha acontecido. Percebi que dizer não não era falta de amor; era uma forma de me proteger e proteger quem amo.
Agora pergunto-me: quantas vezes deixamos que os outros ditem as regras da nossa vida? E até quando estamos dispostos a sacrificar a nossa felicidade em nome da família?