O Último Desejo – À Sombra de Uma Mulher Desconhecida

— Não pode ser verdade, mãe… — a voz da minha filha, Mariana, tremia enquanto segurava o envelope com as mãos suadas. Eu sentia o chão fugir debaixo dos meus pés, o ar rarefeito na sala de estar onde, há poucas horas, velávamos o corpo do António. O cheiro das flores misturava-se ao perfume dele ainda impregnado nas almofadas.

— Deixa-me ver isso — pedi, tentando manter a dignidade que me restava. Peguei o testamento e li, linha por linha, as palavras frias do notário: “Deixo todos os meus bens a Sofia Duarte.” O nome ecoou na minha cabeça como um trovão. Sofia Duarte? Quem era esta mulher? Porque é que o António, meu marido durante trinta e dois anos, deixaria tudo a uma desconhecida?

O silêncio caiu pesado entre mim e Mariana. Ela olhava para mim como se esperasse que eu tivesse uma explicação. Mas eu não tinha. Senti-me pequena, traída, ridícula. A raiva subiu-me à garganta.

— Isto só pode ser um erro — murmurei, mas no fundo sabia que não era. O António sempre fora meticuloso com os papéis. Se ele escreveu aquilo, foi porque quis.

Naquela noite não dormi. Sentei-me na beira da cama, rodeada pelas memórias de uma vida partilhada: as viagens ao Douro, os natais em família, as discussões acesas sobre política à mesa da cozinha. Tudo parecia mentira agora. Será que alguma vez o conheci verdadeiramente?

No dia seguinte, liguei ao advogado da família. O Dr. Álvaro atendeu com a voz grave de quem já sabia o que me esperava.

— Dona Teresa, compreendo o seu choque. Mas o testamento é claro. A senhora Sofia Duarte foi nomeada herdeira universal há cerca de dois anos.

Dois anos? Nessa altura o António já estava doente. Lembrei-me das noites em que ele dizia que ia dar um passeio para espairecer, das mensagens no telemóvel apagadas antes de eu poder ler.

— Quem é esta mulher? — perguntei, sentindo as lágrimas ameaçarem cair.

— Não posso revelar detalhes pessoais — respondeu o advogado, evasivo. — Mas posso garantir que tudo foi feito dentro da lei.

Desliguei sem agradecer. Senti-me humilhada. Como é que ele pôde fazer isto comigo? Com a nossa filha? Passei o dia a vaguear pela casa, tocando nos objetos dele como se procurasse respostas: o relógio antigo herdado do pai, os livros de poesia portuguesa alinhados na estante, as cartas de amor que me escreveu quando éramos jovens.

À noite, Mariana apareceu no meu quarto.

— Mãe… achas que ele tinha outra mulher?

A pergunta ficou suspensa no ar. Não consegui responder. Em vez disso, abracei-a com força. Senti o seu corpo tremer contra o meu.

— Não sei, filha… não sei de nada.

Os dias seguintes foram um tormento. Os vizinhos cochichavam à porta do prédio. A minha irmã Clara ligava todos os dias para saber se eu já tinha notícias da tal Sofia Duarte. Eu evitava sair de casa. Sentia vergonha, raiva e uma tristeza tão funda que me parecia impossível de suportar.

Uma tarde, decidi procurar Sofia Duarte nas redes sociais. Havia várias com esse nome em Lisboa, mas uma chamou-me a atenção: uma mulher elegante, cabelos castanhos curtos, sorriso discreto. Tinha fotos em viagens pelo Alentejo, algumas tiradas em sítios onde eu e o António também estivemos. O coração apertou-se-me no peito.

Enviei-lhe uma mensagem curta: “Sou Teresa Almeida, viúva de António Almeida. Precisamos falar.”

Esperei dois dias até receber resposta. Quando finalmente chegou, senti um misto de alívio e medo.

“Podemos encontrar-nos amanhã às 16h no Café Brasileira?”

Na manhã do encontro, quase desisti mil vezes. Mas precisava de respostas.

O café estava cheio de turistas e estudantes. Sentei-me numa mesa junto à janela e esperei. Quando Sofia entrou, reconheci-a imediatamente. Aproximou-se com passos firmes.

— Teresa? — perguntou com voz suave.

Assenti. Ela sentou-se à minha frente e olhou-me nos olhos sem desviar o olhar.

— Não sei por onde começar — disse eu, sentindo a voz embargar-se.

Sofia pousou as mãos na mesa.

— O António falou muito de si e da Mariana…

A raiva explodiu dentro de mim.

— Então conhecia bem a nossa família! — atirei, irónica.

Ela baixou os olhos.

— Não como gostaria…

O silêncio instalou-se entre nós. Finalmente, Sofia respirou fundo e começou a falar:

— Conheci o António há cinco anos num congresso sobre literatura portuguesa. Tornámo-nos amigos rapidamente… Ele estava muito sozinho nessa altura. Disse-me que se sentia perdido depois do diagnóstico…

— Sozinho? Tinha uma família! — interrompi, sentindo-me invisível.

— Eu sei… mas às vezes as pessoas sentem-se sozinhas mesmo rodeadas de quem as ama — respondeu ela com tristeza.

Fiquei sem palavras. O António nunca me falou desse vazio.

— Tivemos uma relação… especial — continuou Sofia. — Não foi só física ou emocional… Era como se nos compreendêssemos sem precisar de falar muito.

As lágrimas correram-me pelo rosto sem controlo.

— Ele amava-a? — perguntei num sussurro.

Sofia hesitou antes de responder:

— Acho que sim… mas também amava a si e à Mariana à sua maneira. Ele sentia-se dividido entre dois mundos.

Saí do café atordoada. A cidade parecia girar à minha volta. Como é possível amar duas pessoas ao mesmo tempo? Como é possível construir uma vida inteira com alguém e ainda assim esconder tanto?

Em casa, Mariana esperava-me ansiosa.

— E então?

Contei-lhe tudo entre soluços. Ela abraçou-me em silêncio.

Os meses passaram devagar. Tive de sair da casa onde vivi metade da minha vida porque agora pertencia à Sofia Duarte. Procurei trabalho pela primeira vez em vinte anos para pagar as contas do novo apartamento pequeno nos Olivais. Os amigos afastaram-se aos poucos; alguns não sabiam o que dizer, outros talvez tivessem medo do contágio da tragédia alheia.

A relação com Mariana também mudou. Ela tornou-se mais fechada, zangada com o pai por nos ter deixado assim e comigo por não ter percebido nada antes.

Um dia recebi uma carta da Sofia Duarte:

“Teresa,
Sei que nada do que eu possa dizer ou fazer vai reparar a dor que sente. Mas quero partilhar consigo parte do que recebi do António: os livros dele, algumas cartas antigas e metade do valor da casa. Não quero ficar com tudo aquilo que não me pertence por direito moral.”

Chorei ao ler aquelas palavras. Aceitei os livros e as cartas; recusei o dinheiro. Não queria nada dela além das respostas que já tinha tido.

Hoje vivo sozinha num apartamento pequeno mas acolhedor. Trabalho numa biblioteca municipal e reencontrei algum sentido na rotina dos dias simples e nos sorrisos dos leitores habituais. Ainda sinto falta do António todos os dias — do homem que pensei conhecer e daquele outro que nunca cheguei a descobrir completamente.

Às vezes pergunto-me: quantas vidas cabem dentro de uma só pessoa? E será possível perdoar quem nos traiu mesmo depois da morte? Se fosse convosco… conseguiriam seguir em frente?