O Último Adeus de Dona Lurdes: Entre o Medo e a Esperança
— Não me deixes aqui, por favor! — gritei, a voz embargada, enquanto apertava a alça da mala com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos. O cheiro a desinfetante misturava-se com o perfume barato da minha nora, a Joana, que olhava para mim com uma expressão cansada, quase impaciente.
— Dona Lurdes, não é nada disso que está a pensar. Só vamos ver o sítio, conversar… — tentou ela, mas eu já não ouvia. O sangue pulsava-me nas têmporas. Oiço os passos apressados de outros idosos nos corredores, sussurros de vozes resignadas. Sinto-me como uma criança perdida num mercado.
Como é que cheguei aqui? Como é que uma vida inteira de sacrifícios, de noites mal dormidas para criar o meu filho Rui, de domingos passados a cozinhar para toda a família, termina assim? Com uma mala na mão e o coração despedaçado?
— Não quero ficar aqui! — repeti, mais baixo, quase um sussurro. Joana suspirou e olhou para o telemóvel. O Rui não veio. Nunca vem. Desde que ficou com aquele emprego novo em Lisboa, só aparece nos aniversários e no Natal. E mesmo assim, sempre com pressa.
— Mãe, não podemos continuar assim — disse ele ao telefone na noite anterior. — A Joana está exausta, eu trabalho imenso… Tu precisas de cuidados que nós não conseguimos dar.
Cuidados? O que eu preciso é de companhia. De ouvir o riso dos meus netos, de sentir o cheiro do arroz-doce ao domingo. Mas ninguém quer ouvir isso. Todos têm pressa.
A Joana tenta sorrir, mas vejo-lhe as olheiras fundas. Sei que não é fácil cuidar de mim desde que caí e parti a anca. Mas será assim tão difícil amar-me? Será pedir muito?
Entramos na sala comum do lar. Uma televisão antiga passa um concurso qualquer. Duas senhoras jogam às cartas em silêncio. Um senhor olha pela janela, perdido nos seus pensamentos. Sinto uma pontada no peito.
— Olhe, Dona Lurdes, este é o lar da Senhora da Luz. Tem bons profissionais, atividades… — Joana fala como quem tenta vender um produto qualquer. Eu só vejo paredes frias e cadeiras alinhadas demais.
— Não quero ficar aqui — repito, agora com lágrimas a correrem-me pelo rosto.
Ela baixa-se ao meu nível e segura-me nas mãos:
— Eu juro que não é para já. Só quero que veja as opções. O Rui e eu… estamos a tentar encontrar uma solução.
Solução? Eu sou um problema agora?
Lembro-me do dia em que o Rui nasceu. O medo de não ser capaz de cuidar dele, de não ter dinheiro suficiente para lhe dar tudo o que merecia. Trabalhei anos numa fábrica de conservas em Matosinhos, os dedos sempre cheios de cortes e cheiros a peixe. Mas nunca me queixei. Tudo por ele.
Agora sou eu quem precisa e ninguém tem tempo.
A diretora do lar aproxima-se:
— Seja bem-vinda, Dona Lurdes! Aqui tratamos todos como família.
Família? Família é outra coisa. Família é barulho à mesa, discussões por causa do futebol, risos e lágrimas misturados.
Joana fala com a diretora sobre preços e vagas. Eu olho à volta e vejo uma senhora a chorar baixinho num canto. Aproximo-me devagar.
— Está tudo bem consigo? — pergunto.
Ela olha para mim com olhos vermelhos:
— O meu filho prometeu vir buscar-me… mas já passaram três meses.
Sinto um nó na garganta. Será este o meu futuro?
Joana termina a conversa e volta para mim:
— Vamos embora por hoje, Dona Lurdes.
No carro, o silêncio pesa mais do que a minha mala.
— Joana… — começo, mas ela interrompe:
— Eu sei que está magoada. Mas eu também estou cansada. O Rui não percebe… Ele acha que tudo se resolve com dinheiro ou telefonemas rápidos.
Vejo-lhe as lágrimas nos olhos. Pela primeira vez, vejo-a como mulher e não só como nora. Ela também está sozinha nesta luta.
Chegamos a casa e ela ajuda-me a subir as escadas devagarinho. O cheiro do café acabado de fazer enche-me as narinas e por um momento sinto-me em casa outra vez.
O Rui liga nessa noite:
— Então? Correu bem?
— Correu — responde Joana secamente.
Eu pego no telefone:
— Rui, eu não quero ir para um lar.
Do outro lado, silêncio.
— Mãe…
— Eu sei que é difícil. Mas eu só quero estar perto de vocês. Não preciso de luxos nem de enfermeiras vinte e quatro horas por dia. Só preciso de sentir que ainda faço parte desta família.
Ele suspira:
— Vou tentar ir aí este fim-de-semana.
Desligo o telefone com as mãos a tremer.
Nessa noite não durmo. Ouço os passos da Joana pela casa, o choro abafado no quarto ao lado. Sinto-me culpada por ser um peso, mas também revoltada por ser descartada como um móvel velho.
No dia seguinte decido falar com ela:
— Joana… desculpa se sou difícil. Sei que tens feito tudo por mim.
Ela abraça-me inesperadamente:
— Eu só queria conseguir fazer mais…
Choramos as duas na cozinha enquanto o sol entra pela janela e ilumina as fotografias antigas na parede: o Rui pequeno na praia da Foz; eu e o meu falecido marido no casamento; todos juntos num Natal já distante.
Dias depois, o Rui aparece finalmente. Traz flores e um sorriso nervoso.
— Mãe…
Olho-o nos olhos:
— Filho, lembra-te de quando eras pequeno e tinhas medo do escuro? Eu nunca te deixei sozinho. Agora sou eu quem tem medo…
Ele baixa os olhos:
— Desculpa, mãe. Não sabia que era assim tão difícil para ti.
Sentamo-nos os três à mesa e conversamos como há muito não fazíamos. Falamos sobre alternativas: talvez um cuidador algumas horas por dia; talvez dividir tarefas entre eles; talvez simplesmente ouvir mais uns aos outros.
Não sei como será o futuro. Sei apenas que hoje não fui deixada num lar. Sei que ainda sou amada — mesmo quando o amor se confunde com cansaço ou desespero.
À noite olho para as estrelas pela janela do meu quarto e pergunto-me: quantos idosos sentem este medo todos os dias? Quantos são ouvidos antes de serem deixados para trás?
E vocês? Já pensaram no que significa realmente cuidar de quem cuidou de nós?