O Último Abraço: Como Dissemos Adeus à Nossa Filha Entre Lágrimas e Esperança

— Mãe, ela vai acordar? — perguntou o meu filho mais velho, o Tomás, com a voz embargada, enquanto olhava para a irmãzinha deitada na cama do hospital. O silêncio que se seguiu foi tão pesado que parecia esmagar o peito. Eu queria mentir, queria dizer-lhe que sim, que a Leonor ia acordar, que tudo não passava de um pesadelo. Mas não consegui. Senti as lágrimas queimarem-me os olhos e apenas consegui apertar-lhe a mão.

Naquele quarto frio do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, o tempo parecia ter parado. O cheiro a desinfetante misturava-se com o perfume suave do ursinho de peluche da Leonor, que repousava junto à sua cabeça. O sol entrava pela janela, mas não aquecia nada. Oiço ainda hoje o som dos monitores cardíacos, aquele bip constante que me lembrava que cada segundo era precioso — e finito.

Tudo começou há três dias. A Leonor tinha febre alta e uma tosse estranha. Achei que era só mais uma bronquiolite, como tantas outras crianças apanhavam na creche. Mas naquela noite ela ficou mole, sem forças sequer para chorar. Corremos para as urgências. Lembro-me do olhar assustado do meu marido, o Rui, enquanto esperávamos pelo pediatra.

— Isto não é normal, Marta — sussurrou ele. — Ela nunca esteve assim.

Quando finalmente nos chamaram, a médica olhou para a Leonor e imediatamente pediu exames. O diagnóstico caiu como uma sentença: meningite bacteriana fulminante. Não percebi metade do que disseram, só me lembro da palavra “fulminante” e do olhar grave da médica.

Foram horas de espera, de perguntas sem resposta. A Leonor foi transferida para os cuidados intensivos. Ligaram-na a máquinas, tubos por todo o lado. Eu sentia-me inútil, uma mãe incapaz de proteger a filha. O Rui tentava ser forte por mim e pelo Tomás, mas vi-lhe as lágrimas quando pensava que ninguém estava a olhar.

Na segunda noite, chamaram-nos ao gabinete do médico. O Dr. Álvaro sentou-se à nossa frente com um ar cansado.

— A Leonor está muito grave. Fizemos tudo o que podíamos, mas… — fez uma pausa longa demais — …o cérebro dela já não responde. Sei que é difícil ouvir isto, mas precisamos de falar convosco sobre a possibilidade de doação de órgãos.

Senti o chão fugir-me dos pés. O Rui ficou branco como a parede atrás dele. O Tomás ficou na sala de espera com a avó, mas eu só pensava em como lhe ia explicar que a irmãzinha não vinha para casa.

— Não sei se consigo… — murmurei, quase sem voz.

O Dr. Álvaro olhou-me nos olhos.

— Sei que é pedir muito numa altura destas. Mas há outras crianças à espera de um coração, de um rim… A Leonor pode salvar vidas.

Fiquei ali sentada horas sem conseguir decidir nada. Lembrei-me do primeiro sorriso da Leonor, das noites em claro com ela ao colo, das birras e das gargalhadas. Como é que se diz adeus a um filho? Como é que se aceita que o corpo dela possa dar vida a outros?

O Rui segurou-me nos braços e chorámos juntos como nunca tínhamos chorado antes. No fim, olhámos um para o outro e soubemos: não podíamos deixar que tudo acabasse ali. A Leonor tinha sido luz nas nossas vidas; talvez pudesse ser luz na vida de outros.

Na manhã seguinte, assinei os papéis com as mãos a tremer. A enfermeira Ana ficou comigo enquanto eu despedia da minha filha. Cantou-lhe baixinho “O Balão do João”, a canção preferida da Leonor. Eu sentei-me na beira da cama e acariciei-lhe o cabelo macio.

— Vais ser sempre a minha menina — sussurrei-lhe ao ouvido. — Onde quer que estejas.

O Tomás entrou no quarto com um desenho na mão: ele e a Leonor num baloiço no parque. Deixou-o junto ao ursinho dela.

— Para ela não se esquecer de mim — disse ele, com os olhos vermelhos.

Quando os médicos vieram buscá-la para o bloco operatório, senti uma dor física no peito, como se me arrancassem metade do coração. O Rui abraçou-me com força e ficámos ali, juntos no silêncio mais ensurdecedor da nossa vida.

Os dias seguintes foram um nevoeiro denso. As pessoas ligavam, mandavam mensagens, mas eu não conseguia responder a ninguém. A casa parecia vazia demais sem os passinhos apressados da Leonor pelo corredor.

A família tentou ajudar: a minha mãe trouxe sopa quente todos os dias; o meu pai arranjou o jardim porque não sabia como falar sobre a dor; a irmã do Rui veio dormir connosco para não ficarmos sozinhos. Mas havia também quem não entendesse:

— Eu nunca teria coragem de fazer isso — disse-me uma tia ao telefone. — Como é que conseguiste?

Não respondi. Ninguém sabe como reage até estar lá.

O Tomás começou a ter pesadelos. Chamava pela irmã durante a noite e perguntava vezes sem conta porque é que Deus tinha levado a Leonor e não outra pessoa qualquer.

— Ela está no céu? — perguntou-me uma noite.

— Está — respondi-lhe, tentando acreditar nas minhas próprias palavras.

Um mês depois recebemos uma carta anónima do hospital: “O coração da vossa filha bate agora no peito de outra criança.” Chorei como nunca tinha chorado antes — de tristeza e de alívio ao mesmo tempo.

A vida foi voltando devagarinho ao normal, mas nunca igual ao que era antes. O Rui voltou ao trabalho na Câmara Municipal; eu tentei retomar as minhas aulas na escola secundária onde dava Português, mas cada criança me lembrava a Leonor.

A família começou a discutir por coisas pequenas: quem devia ter estado mais presente no hospital; se devíamos ter tentado outro médico; se devíamos mudar de casa para esquecer tudo aquilo. Houve acusações veladas e silêncios pesados nos almoços de domingo.

Uma noite ouvi o Rui ao telefone com o irmão:

— Não sei se algum dia vou conseguir perdoar-me por não ter feito mais…

Entrei na sala e sentei-me ao lado dele.

— Fizemos tudo o que podíamos — disse-lhe baixinho. — E demos à Leonor a oportunidade de ser eterna noutras vidas.

Ele chorou nos meus braços como no primeiro dia.

Hoje olho para trás e vejo como esta dor nos mudou — tornou-nos mais frágeis mas também mais humanos. O Tomás desenha corações em todos os cadernos; diz que são para a mana ver lá do céu.

Às vezes pergunto-me: será que algum dia vamos conseguir voltar a ser felizes? Ou será esta saudade uma forma diferente de amar? Talvez nunca haja resposta certa — mas sei que a Leonor vive em cada criança que respira graças ao seu último presente.

E vocês? O que fariam se tivessem de escolher entre o adeus e a esperança? Conseguiriam transformar dor em vida?