O Testamento Que Separou a Minha Família

— Mariana, tens de fazer um testamento. Agora. — A voz da minha mãe cortou o burburinho da festa como uma faca afiada.

Os balões ainda dançavam no teto, as crianças corriam pelo jardim, e eu segurava o bolo de chocolate nas mãos, sentindo o glacê derreter sob os meus dedos. Olhei para a minha mãe, incrédula, tentando perceber se aquilo era uma piada. Mas o olhar dela era frio, determinado, como se estivesse a falar de algo tão simples como escolher o sabor do bolo.

— Mãe, por favor… — sussurrei, tentando não chamar a atenção dos outros convidados. — Hoje não. É o aniversário da Leonor.

Ela não se mexeu. Nem um músculo. — Se não fizeres um testamento, o Rui fica com a casa se te acontecer alguma coisa. Já viste o que aconteceu à tua tia Rosa. Não quero isso para ti.

O Rui, o meu marido, estava do outro lado do jardim, a brincar com a Leonor e o primo dela. O riso deles ecoava pelo ar quente de junho. Senti um nó na garganta. Porque é que a minha mãe tinha de trazer isto agora? Porque é que nunca conseguíamos ter um momento de paz?

— Mariana, ouve-me — insistiu ela, baixando a voz mas apertando-me o braço com força. — O Rui pode parecer bom homem agora, mas as pessoas mudam. E tu sabes que esta casa é da nossa família há três gerações.

A raiva subiu-me à cabeça. — Achas mesmo que o Rui me faria mal? Achas que ele casou comigo por causa da casa?

Ela desviou o olhar, mas não respondeu. E nesse silêncio percebi que havia mais ali do que apenas preocupação.

A festa continuou à nossa volta, mas para mim tudo ficou em suspenso. Os risos das crianças tornaram-se distantes, como se eu estivesse debaixo de água. Sentei-me no banco do jardim e tentei respirar fundo.

Lembrei-me do dia em que trouxe o Rui cá pela primeira vez. O meu pai ainda era vivo, e lembro-me de como ele apertou a mão do Rui com força demais, como se quisesse testar-lhe os ossos. A minha mãe ficou calada durante todo o jantar, só observava. No final da noite, disse-me: “Ele não é daqui. Não sabe o valor desta casa.”

Mas eu estava apaixonada. O Rui era diferente dos rapazes da vila. Trabalhador, carinhoso, fazia-me rir quando tudo parecia perdido. Quando casámos, foi aqui nesta casa antiga de pedra e madeira, com as paredes cheias de retratos dos meus avós e bisavós.

Agora, anos depois, tudo parecia desmoronar-se por causa de um testamento.

À noite, depois de todos irem embora e a Leonor adormecer com os cabelos cheios de purpurinas, sentei-me na cozinha com o Rui.

— A tua mãe falou comigo — disse ele, sem rodeios.

O meu coração parou por um segundo. — O quê? Quando?

— Enquanto tu estavas a arrumar os presentes da Leonor. Ela foi direta: disse-me que se eu gostasse mesmo de ti, não me importava que a casa ficasse só para ti e para a Leonor.

Fiquei sem palavras. — E tu… o que disseste?

Ele olhou para mim com aqueles olhos castanhos sinceros que me conquistaram há tantos anos. — Disse-lhe que não estou aqui pela casa. Que se quiseres fazer um testamento, fazes. Mas que isso não muda nada entre nós.

Mas mudou. Mudou tudo.

Nos dias seguintes, a tensão entre mim e a minha mãe tornou-se insuportável. Ela ligava-me todos os dias:

— Já foste ao notário? Já falaste com um advogado? Não deixes isto para depois!

O Rui começou a chegar mais tarde do trabalho. Dizia que tinha reuniões, mas eu sabia que era para evitar as discussões em casa.

Uma noite, depois de deitar a Leonor, sentei-me sozinha na sala escura e comecei a chorar baixinho. Senti-me dividida entre dois mundos: o da minha família e o do meu casamento.

Lembrei-me das histórias que a minha avó contava sobre esta casa: como sobreviveu à guerra, às cheias, às pragas de insetos. Sempre foi um símbolo de resistência e união. Mas agora era uma fonte de discórdia.

Numa manhã chuvosa de julho, decidi enfrentar a minha mãe.

— Mãe, chega! Não vou fazer testamento nenhum agora! O Rui é meu marido e confio nele!

Ela olhou para mim com olhos vermelhos de raiva e tristeza.

— Tu não sabes tudo sobre ele…

Fiquei gelada. — O que queres dizer com isso?

Ela hesitou por um momento e depois largou tudo:

— O teu pai também parecia perfeito no início. Mas quando morreu… descobri dívidas escondidas, promessas quebradas. Tive de lutar para manter esta casa! Não quero que passes pelo mesmo!

Senti uma dor profunda no peito. Nunca tinha ouvido a minha mãe falar assim do meu pai. Sempre pensei que tinham tido um casamento feliz.

— Porque nunca me contaste isto?

Ela encolheu os ombros, derrotada.

— Queria proteger-te…

Nesse momento percebi que todos nós carregamos segredos e medos antigos. A minha mãe não estava só preocupada com a casa; estava assustada por me ver repetir os erros dela.

Fui para casa e abracei o Rui com força.

— Desculpa… — sussurrei-lhe ao ouvido. — Desculpa por tudo isto.

Ele acariciou-me os cabelos.

— Mariana, eu amo-te. Não quero saber da casa. Quero saber de ti e da Leonor.

Naquela noite dormimos juntos como há muito não fazíamos: abraçados, sem palavras entre nós.

No dia seguinte marquei uma reunião familiar. Sentei a minha mãe à mesa com o Rui e expliquei tudo à Leonor da forma mais simples possível.

— Esta casa é importante para todos nós — disse eu — mas mais importante é estarmos juntos e confiarmos uns nos outros.

A minha mãe chorou em silêncio. O Rui pegou-lhe na mão e prometeu-lhe que nunca faria nada para nos magoar.

Não sei se alguma vez ela vai confiar verdadeiramente nele. Mas sei que agora compreendo melhor os seus medos… e os meus próprios limites.

Às vezes pergunto-me: será possível quebrar os ciclos antigos das nossas famílias? Ou estamos todos condenados a repetir os mesmos erros?

E vocês? Já sentiram este peso dos segredos familiares? Como lidaram com isso?